O   Trauma Transgeracioal Na Cultura, na Neurociência e na epigenética

Antonio Maspoli

Introdução

Nesta obra o trauma histórico transgeracional  é entendido como um conjunto de acontecimentos traumáticos, cujos sintomas e suas manifestações ocorrem por meio da doença em si mesma. O trauma histórico é um tipo de Síndrome de Estresse Pós Traumático.  O trauma histórico pode ser transmitido por meio das memórias coletivas, de modo consciente e/ou inconsciente, ou mesmo por uma amnésia coletiva: o não dito. O trauma histórico pode ser transmitido de geração a geração, assim como seus afetos e sintomas correspondentes. Existem duas formas de transmissão do trauma histórico: a transmissão intergeracional e a transmissão transgeracional.

Este pesquisador optou pelo termo transgeracional por considerá-lo mais objetivo do que o termo intergeracional. Embora considere os dois termos citados como sinônimos.

A transmissão intergeracional ocorre por meio da transmissão das memórias traumáticas de uma geração para a outra. Essa é uma transmissão de elementos conscientes, intimamente ligados à história da memória do grupo. A transmissão intergeracional ocorre por meio da comunicação verbal e não verbal. A transmissão se dá no seio da família, pelo contato direto entre seus membros – pais e filhos, avós e netos, irmãos e irmãs, tios e sobrinhos, etc. (SCHÜTZENBERGER, 1993).

A transmissão transgeracional refere-se à distância temporal de transmissão entre duas ou mais gerações. Transgeracional diz respeito às gerações, muitas vezes, sem contato direto. Atua no sentido descendente, uma vez que a geração passada passa para a geração atual suas memórias traumáticas. A transmissão de elementos patológicos se dá frequentemente de modo inconsciente, por meio do não dito, aquilo que segue os caminhos dos segredos proibidos, do tabu. O não dito se manifesta pelos sintomas psicológicos e psicossomáticos- a linguagem do trauma.

Não existe um único modelo para a compreensão da transmissão do trauma transgeracional nem das suas consequências. Um trauma histórico pode provocar modificações profundas no funcionamento do grupo e de seus indivíduos, com a consequente retraumatização dos seus membros. A violência sofrida pelos membros de um grupo social pode ser retransmitida, de maneira simbólica, aos indivíduos das gerações subsequentes, que atualizam não só o núcleo do trauma, como podem produzir a sintomatologia correspondente.

Diversos pesquisadores trabalham com a transmissão transgeracional do trauma. O primeiro a abordar o tema da transmissão intergeracional do trauma foi Sigmund Freud (2006a; 2006b), em “Totem e Tabu” (2006a) e em “Moisés e o Monoteísmo”(2006b). Carl Gustav Jung tratou desse tema quase na mesma época, em sua obra “Símbolos da Transformação da libido”, publicada em 1911-1912. Recentemente, o tema da transmissão intergeracional do trauma tem ocupado lugar de destaque na pesquisa sobre a transmissão do trauma na família.

Gabriele Schwab (2010) investiga a transmissão intergeracional do trauma em crianças substitutas, aquelas que nascem para ocupar o lugar de uma criança perdida numa família. Anne Ancelin Schützenberger (1998) aborda a transmissão intergeracional do trauma como a síndrome do antepassado e apresenta um conjunto de teorias psicoanalíticas para a abordagem do trauma geracional e transgeracional (1993). Margaret Wilkinson (2010) estuda as relações entre o trauma transgeracional e a memória implícita em uma abordagem junguiana e neurocientífica. Rachel Yehuda et al. (2015) demonstram a possibilidade de transmissão genética das consequências do trauma do holocausto.

Neste trabalho, foram destacados alguns modelos de transmissão intergeracional do trauma, tais como o desamparo aprendido; a transmissão por meio das memórias coletivas e memórias afetivas; a transmissão mediante processos inconscientes, em Freud e Jung. Serão destacados, ainda, os recentes estudos sobre a transmissão genética das consequências do trauma transgeracional realizados por Rachel Yehuda e seus colaboradores.

O desamparo aprendido

Cynthia C. Wesley-Esquimaux e  Magdalena Smolewski (2004) propõem um modelo cognitivo para a transmissão intergeracional do trauma histórico dos povos indígenas baseado no conceito de desamparo aprendido. O trauma histórico é compreendido como um complexo conjunto de acontecimentos traumáticos ocorridos num determinado espaço histórico e retransmitidos de geração a geração, por intermédio das memórias coletivas, da amnésia coletiva e de padrões de comportamentos que reproduzem as condições originais do trauma e sua sintomatologia. Não se trata aqui de um processo estático, haja vista que tanto o trauma quanto sua transmissão são processos dinâmicos.

O desamparo aprendido pode afetar os seguintes processos psicológicos: motivação (que é reduzida na ausência de incentivo para experimentar novas respostas de enfrentamento, produzindo comportamentos passivos, sem nenhuma atitude de reação), cognição (com a consequente incapacidade de aprender novas respostas de superação) e emoção (que seria a prevalência de estados depressivos, com sentimentos de inutilidade, culpa e até de pensamentos suicidas). Segundo essa teoria, o desamparo aprendido pode se tornar um pré-requisito para a invisibilidade social: produzindo sujeitos incapazes ou sem vontade de agir de acordo com as normas sociais e sem forças para resistir, suscitando passividade na ação, em lugar de uma atitude proativa frente à realidade e ao processo de assimilação cultural (WESLEY-ESQUIMAUX; SMOLEWSKI, 2004, p. 77).

Em face da experiência de genocídio cultural, os indivíduos ou os grupos podem perceber que seus comportamentos de ação e reação não têm nenhum efeito sobre os acontecimentos em curso. Os indivíduos ou grupos podem tornar-se, assim, passivos, inativos, hostis, culpados e depressivos.

O fracasso social nessa teoria é atribuído ao comportamento do próprio grupo, sem considerar o contexto dos fatores históricos e sociais adversos que o cerca. Essa forma de compreender o fracasso social do grupo pode levar a uma atribuição interna de culpa, que pode reduzir ainda mais a autoestima e a capacidade de resiliência do grupo traumatizado.

Não se desconsidera a relevância dessa abordagem, neste trabalho; contudo, não se privilegia o desamparo aprendido na transmissão intergeracional do trauma, nesta pesquisa, por se ter em conta que o desamparo aprendido não é suficiente para explicar o trauma em suas características inconscientes. Não existe passividade quando se trata de grupos humanos em interação com outros grupos. Não se pode ver o homem apenas como objeto do processo social, pois mesmo aqueles que foram traumatizados historicamente podem agir como sujeitos

O trauma transgeracional na neurociência e na epigenética

Na mitologia grega, Mnemosine, a esposa de Zeus, tornou-se o símbolo da memória. Os gregos utilizavam duas palavras para memória: mnémie e anamnese, que significavam a capacidade de evocar representações para criar, na mente, uma cópia de uma estrutura ausente, um objeto, uma pessoa. Memória, para os gregos, é aquilo que fica gravado na psique.

 O termo memória coletiva nasceu na Sociologia, com a obra de Maurice Halbwachs (1997). Segundo esse autor, o passado é preservado tanto na memória individual quanto na memória coletiva do grupo social. A memória é um constructo social. O sujeito existe numa determinada fração do tempo. Sua história e suas memórias são construídas socialmente. No grupo social, o conceito de memória individual inexiste, portanto. A memória nasce de uma experiência pessoal, todavia sua construção ocorre no contexto das relações sociais estabelecidas dentro de um grupo social, no seio de uma determinada cultura (NANGY, 2003).

Maurice Halbwachs (197) estabelece algumas relações entre a memória individual e a memória coletiva e aponta alguns caminhos para se entender como o sujeito constrói suas memórias pessoais e coletivas. Os registros da memória coletiva, nos relatos de experiências do grupo, são muito significativos para seus membros. A memória coletiva, por conseguinte, não é o que cada um guardou em sua memória, mas um repositório de experiências e narrativas compartilhadas ao longo de gerações. Essas memórias, em certo sentido, definem o lugar do grupo no mundo e o lugar do sujeito no grupo.

Além disso, a memória coletiva é o conjunto das representações do conteúdo da memória dos membros do grupo, em um amálgama entre o que o grupo afirma que viveu, em suas narrativas, e o que cada um experimentou na sua experiência concreta. A memória coletiva é sempre transformada pela memória de cada um e restaurada pela memória de todos. Nem sempre o sujeito viveu as experiências narradas por ele na memória coletiva. No entanto o sujeito se inclui na narrativa por identificação com o grupo. O que faz sentido para o sujeito não é a veracidade das memórias coletivas, porém a possibilidade de ligação intergeracional de fatos intersubjetivos, herdados e adquiridos pelas memórias coletivas. O sujeito pertence ao grupo, logo, as memórias coletivas lhe pertencem, quer as tenha vivido, quer não. A memória coletiva contribui para o trabalho de construção da memória individual – serve de referência para a construção das memórias individuais – e é transmitida por meio da produção cultural: mitos, ritos, danças, contos e lendas da comunidade (WESLEY-ESQUIMAUX; SMOLEWSKI, 2004, p. 80).

Assim, a memória não é apenas a capacidade de lembrar, é o veículo transmissor do passado para o presente, ou seja, é a presentificação do passado no presente. A memória coletiva pode ser comparada a uma herança cultural, quando a transmissão ocorre de forma inconsciente e automática. Posto que a memória coletiva se confunde com a cultura do grupo. Não pode ser diferente com a memória traumática. Especialmente aquelas que são mantidas vivas no grupo por alguma razão consciente e, ou, inconsciente.

Memórias recorrentes do trauma vivido pelos membros de uma sociedade acabarão, mais cedo ou mais tarde, como parte de uma narrativa social do grupo, que será transmitida oralmente às gerações seguintes, culminando por fazer parte, como fragmento, da história pessoal de cada membro do grupo.

O trauma pode causar severos distúrbios nos processos de integração cognitiva, sensorial e emocional. Quanto maior a intensidade e a duração do trauma, maiores podem ser suas consequências sobre a resposta ao estresse, da parte do sujeito traumatizado. Essas alterações na bioquímica, nas sinapses e nas redes neuronais apresentam um reflexo direto no sistema nervoso simpático. Tal alteração modifica significativamente a resposta do sujeito à ansiedade.

Louis Cozolino (2010) afirma que o trauma pode desencadear um desequilíbrio nos mediadores químicos do cérebro. Há um aumento da produção de catecolaminas (por exemplo, epinefrina e norepinefrina), que resulta no aumento da atividade do sistema nervoso simpático. Há, muitas vezes, uma diminuição dos níveis de serotonina e corticosteroides – o efeito mais pronunciado, provavelmente, consiste na diminuição da capacidade para modular a catecolamina – desencadeada pela resposta de luta ou fuga. O resultado é a dificuldade para o sujeito modular suas reações emocionais desencadeadas pela ansiedade diante de uma ameaça real ou psicológica. Neste caso, o sujeito tanto pode ter um ataque de fúria, por exemplo, quanto pode permanecer paralisado perante a situação traumática (COZOLINO, 2010, p. 264).

Ademais, há aumento dos níveis de opioides endógenos, o que pode resultar em analgesia, dor, embotamento emocional e diminuição da memória. É importante perceber que a exposição crônica ao estresse traumático afeta a produção e a receptação desses mediadores químicos. Em outras palavras, o trauma pode alterar substancialmente o modo como o sujeito lida com a realidade e com o estresse, em seu cotidiano. A exposição prolongada ao trauma, dependendo da intensidade deste, pode causar um desequilíbrio na bioquímica do cérebro responsável pela homeostasia do sistema nervoso central, de sorte a produzir distúrbios comportamentais e alterações psicológicas (COZOLINO, 2010, p. 265).

Um exemplo específico desse efeito neurobiológico do trauma pode ser visto na atividade do sistema límbico, isto é, a parte do sistema nervoso central que orienta a emoção, a memória e o comportamento necessário para ativar o sistema de autopreservação. O trauma pode causar anormalidades nesse sistema, na amígdala e no hipocampo. Com efeito, é a amígdala que prepara o corpo para a ação e, em função do trauma, pode permanecer permanentemente em estado de alerta. A hipervigilância resultante do trauma pode levar o sujeito imediatamente do estímulo para uma resposta de excitação, sem ser capaz de fazer a avaliação necessária e precisa, para a modulação das emoções. A modulação das emoções é a base para a tomada de atitudes em nível emocional envolvendo raiva, ódio, compaixão, etc. (COZOLINO, 2010).

Por sua vez, o eixo HPA – hipotálamo, pituitária e adrenal – pode sofrer alterações significativas com a experiência traumática, criando um estado permanente de vigília e estresse para o sujeito. Esses comportamentos têm sido verificados em pacientes com com TEPT ou PTSD (da sigla em inglês) – Transtorno de Estresse Pós-Traumático. Pessoas que sofrem de PTSD podem experimentar uma desativação do córtex pré-frontal (que é responsável pela função executiva). Essas alterações são capazes de afetar não só a tomada de atidudes quanto a execução das atitudes tomadas. O estresse pode paralisar o sujeito diante de realidade estressante (COZOLINO, 2010).

O trauma pode diminuir a atividade na área de broca do cérebro, que está relacionada à linguagem. Ao mesmo tempo, não há aumento de atividade no sistema límbico. Quando o trauma é revivido, o sujeito pode apresentar grande dificuldade em verbalizar as experiências traumáticas. Especialmente quando o trauma ocorre na fase pré-verbal e a intensidadade do trauma é muito grande, pode acarretar a impossibildiade de o sujeito representar a dor. Neste caso, o trauma é revivido como um terror sem palavras (COZOLINO, 2010).

Cozolino (2010) observa que alguns distúrbios da memória são predominantes em pacientes com transtorno de estresse pós-traumático (PTSD) e fazem parte dos critérios diagnósticos, que incluem memórias intrusivas do evento traumático e a incapacidade de recordar aspectos importantes do trauma. In addition, patients with PTSD often complain of experiencing everyday memory problems with emotionally neutral material, although these problems are not included in the diagnostic criteria.Ademais, os pacientes com PTSD, muitas vezes, queixam-se de problemas de memória no cotidiano, embora esses problemas não sejam incluídos no critério de diagnóstico (COZOLINO, 2010). As vezes a perda da memória é tão acentuado que a observação clínica pode confindi-la com o mal de Alzheimer.  Documenting these types of memory deficits related to PTSD, and understanding the reasons underlying these deficits, has become a primary focus for researchers for the past, 20 years, in part because memory problems can lessen a patient's engagement in, and response to, treatment.

Os principais transtornos de memória apresentados por portadores de PTSD são: a) amnésia e memória tardia – quando o sujeito esquece completamente o momento do trauma; b) mudanças nas características de memória ao longo do tempo; c) além disso, o trauma afeta o acesso às memórias declarativas ou explícitas. Essas alterações na memória declarativa podem ser causadas pelas alterações na amígdala, produzidas pelo trauma (COZOLINO, 2010, p. 271).

Rachel Yehuda et al. (1997), em pesquisa,  há vinte anos analisa   o trauma intergeracioal em descendentes do holocausto sob a perspectiva da epigenética. Rachel Yehuda destaca que outro efeito significativo do trauma pode se dar no sistema de produção e regulação do cortisol no eixo HPA. Em resposta ao estresse, vários sistemas bioquímicos são ativados a fim de mobilizar o corpo para a reação de luta ou fuga. Durante o estresse, o cérebro também sinaliza a glândula pituitária para estimular a liberação de cortisol pela glândula adrenal. A função do cortisol em resposta ao estresse é desligar as outras reações bioquímicas que tenham sido ligadas, de sorte a lidar com as demandas de curto prazo de um estressor. Se o cortisol não desligar essas reações, elas podem, a longo prazo, causar danos ao corpo. Portanto, é possível conceituar o cortisol como um hormônio antiestresse, porque, se um organismo é incapaz de produzir cortisol em quantidades suficientes em resposta ao estresse, isso pode produzir consequências deletérias (YEHUDA et al., 1998).

Rachel Yehuda et al. (1998) se utilizam do teste do nível de dexametasona para aferir a resposta de reação ao estresse. O teste de supressão de dexametasona (TSD) é usado como uma sonda do eixo HPA. A dexametasona é um glucocorticoide sintético que imita os efeitos do cortisol e permite testar a eficácia do eixo HPA em desligar a amigdala em resposta ao estresse. Sob condições normais, a administração de dexametasona resulta numa supressão de cortisol. Isso indica que o feedback negativo do cortisol está intacto e que o corpo é capaz de responder ao estresse. No entanto, sob condições de hipercortisolismo, tal como é observado na depressão maior, a dexametasona, muitas vezes, deixa de regular os níveis de cortisol, o que resulta em uma resposta chamada de neurossupressão. A neurosupressão  sugere um defeito na sensibilidade de receptores de cortisol (YEHUDA et al., 1998).

Rachel Yehuda et al. (1998; 2015) afirmam que, com poucas exceções, a literatura sobre descendentes de sobreviventes do Holocausto é dividida em dois grupos: aqueles que descrevem os efeitos adversos do Holocausto e aqueles não notam esses efeitos prejudiciais nos descendentes. Nos trabalhos de Yehuda são focalizadas as pesquisas sobre os efeitos danosos do trauma do Holocausto em descendentes de sobreviventes que sofrem da síndrome do sobrevivente do campo de concentração.

Rachel Yehuda et al. (1998; 2015) observam que a literatura que descreve os efeitos do Holocausto em descendentes de sobreviventes se desenvolveu em paralelo com a literatura que descreve os efeitos do Holocausto em seus sobreviventes. Descrições iniciais da chamada síndrome do sobrevivente (década de 1960) surgiram quando médicos começaram a perceber que a clássica visão psicanalítica da depressão, luto e respostas ao trauma não forneciam uma estrutura teórica adequada para a compreensão e tratamento de sobreviventes do Holocausto. Os indivíduos que procuravam tratamento não se beneficiavam das terapias clássicas.

Na era do pós-Holocausto surgiram pesquisas consistentes sobre os efeitos intergeracionais dos traumas parentais. Logo após a descrição da Síndrome do Holocausto, Niederland (1961 apud YEHUDA et al., 1998) apresentou relatos sobre a transmissão dos efeitos do trauma do Holocausto na segunda geração de sobreviventes. Percebia-se, inicialmente, uma falta de consenso sobre o que estava sendo transmitido. Havia indícios iniciais de certos sintomas complexos ou até mesmo psicopatologias específicas, em filhos dos sobreviventes do Holocausto (BAROCAS; BAROCAS, 1973 apud YEHUDA et al., 1998).

Em um estudo seminal, Solomon et al. (1988 apud YEHUDA et al., 1998) examinaram um grupo de soldados israelitas que desenvolveram transtorno de estresse pós-traumático, durante a guerra do Líbano, e descobriram que os soldados descendentes dos sobreviventes do Holocausto apresentaram um processo de Síndrome de Estresse Pós Traumático mais prolongado. Assim, levantou-se a hipótese da existência de um fator de vulnerabilidade em m descendentes dos sobreviventes. Essa descoberta ainda serviu para sublinhar a ideia de que descendentes de sobreviventes são mais frágeis e vulneráveis. Pode-se afirmar que os filhos de sobreviventes do Holocausto apresentam sintomatologia e características psiquiátricas que carregam uma semelhança impressionante com a síndrome do sobrevivente do campo de concentração, descrita na literatura internacional, e que essas crianças apresentam sintomas que seriam compatíveis se elas realmente tivessem vivido o Holocausto (YEHUDA et al., 1998).     

A hipótese levantada por Rachel Yehuda (1998) e seu grupo de pesquisadores confirma que os descendentes dos sobreviventes do Holocausto também sofrem da síndrome do sobrevivente do campo de concentração. Os descendentes pesquisados teriam sido submetidos ao trauma transgeracional do Holocausto, pelas narrativas e mesmo por alguma mutação genética oriunda dos genes de seus pais.   

A síndrome do sobrevivente do campo de concentração aproxima-se do diagnóstico de PTSD, apresentado por sobreviventes do Holocausto. Os principais sintomas dessa síndrome podem ser assim descritos: a) uma incidência maior de depressão e ansiedade; b) presença de comportamento mal-adaptativo, como transtorno de conduta, problemas de personalidade, maturidade insuficiente, excessiva dependência; c) pobreza nas condutas de enfretamento de novos problemas; d) maior propensão para doenças físicas; e) maior vulnerabilidade geral ao estresse; e, f) maior propensão para o desenvolvimento de PTSD (YEHUDA et al., 1998).

Rachel Yehuda et al. (1998) realizaram três estudos. Na primeira abordagem, buscaram analisar as relações entre os traumas dos descendentes e os traumas dos pais. Na segunda, compararam a primeira e a segunda gerações de sobreviventes do Holocausto, sem associação com relacionamento familiar (isto é, comparando um grupo de sobreviventes do Holocausto a um grupo semelhante selecionado, mas não aos descendentes de sobreviventes do Holocausto) em variáveis ​​de estresse. Uma terceira abordagem consistiu em explorar diferentes subgrupos da segunda geração de descendentes e comparar esses subgrupos ao grupo de controle, demograficamente pareados (ou seja, adultos judeus com os pais não nascidos europeus) (YEHUDA et al. 1998).

Nas pesquisas citadas, Rachel Yehuda (1998) e seu grupo sustentam que os estudos sobre enfrentamento e resiliência questionam as observações anteriores de deficiência em sobreviventes do Holocausto (por razões metodológicas e outros apontamentos, em vez de resolver a diversidade de opiniões e de dados, reconhecendo o amplo espectro de responsividade ao trauma). A heterogeneidade refletida na literatura acerca do Holocausto é certamente compatível com a ideia, agora bem-estabelecida, de que a longa duração dos efeitos de trauma, tal como refletido pela presença de TEPT, aparecem em alguns, mas não em todos os indivíduos severamente traumatizados.

Rachel Yehuda et al. (1998) entendem que um reconhecimento dos efeitos profundos do trauma também pode servir para vitimizar e estigmatizar ainda mais o sobrevivente, sugerindo implicitamente um dano psicossocial permanente, o que pode ser bastante contraditório com a própria percepção dos sobreviventes sobre a superação dessa adversidade.

Os descendentes de sobreviventes do holocausto que relataram que o Holocausto foi o evento traumático mais significativo de suas vidas também parecem sofrer de sintomas de TEPT. Os sintomas mais comuns descritos foram: dores, flahes do Holocausto, distanciamento emocional, pensamentos intrusivos e perturbadores sobre o Holocausto, senso de futuro abreviado, embotamento afetivo e dificuldades para dormir. Em comparação, os descendentes sem trauma do Holocausto relataram níveis insignificantes desses sintomas.

Em agosto de 2015, Rachel Yehuda et al. publicaram um importante artigo intitulado “Holocaust Exposure Induced Intergenerational Effects on FKBP5 Methylation”. A tese dos autores, nesse texto, pressupõe que o envolvimento de mecanismos epigenéticos na transmissão intergeracional dos efeitos do estresse, demonstrado em animais, pode ter efeitos semelhantes em humanos. A hipótese testada por Rachel Yehuda et al. (2015) é de que algumas modificações genéticas associadas aos traumas sofridos pelos sobreviventes do Holocausto podem ser transmitidas aos filhos e, possivelmente, às gerações seguintes.

A investigação foi realizada por um grupo de pesquisadores do Hospital Monte Sinai, em Nova York, que compararam a composição genética de um grupo de 32 homens e mulheres judeus com a composição genética de seus filhos. O grupo de estudo tinha vivido em um campo de concentração e sofrido com o regime nazista, sendo cotejado com a de outras famílias judias que não tinham vivido na Europa, durante a Segunda Guerra Mundial. A conclusão é de que os filhos das famílias que foram vítimas diretas do Holocausto são mais propensos a sofrer problemas ligados ao estresse (YEHUDA et al., 2015).   

Rachel Yehuda et al. (2015) concluem que os resultados indicaram que os baixos níveis de cortisol em descendentes de sobreviventes do Holocausto podem estar associados com a tendência desses indivíduos para vivenciar a angústia relacionada ao trauma do Holocausto herdado de seus pais. Tal angústia desenvolve os sintomas de PTSD, que podem ter sido produzidos em resposta às narrativas de seus pais sobre eventos associados com o Holocausto. Essas narrativas não só retraumatizam como podem produzir novos traumas (YEHUDA et al., 2015).     

O principal achado desse estudo é que os sobreviventes do Holocausto e seus descendentes têm alterações de metilação no mesmo local, em uma região funcional do gene FKBP5, uma sequência GR-obrigatória, mas na direção oposta. Tais resultados fornecem primeiro a demonstração de uma associação  dos efeitos do estresse com alterações epigenéticas em ambas as espécies de pais expostos e seus descendentes humanos adultos.     

Rachel Yehuda et al. (2015) deixam claro, todavia, tratar-se um estudo piloto, portanto, não conclusivo. Apesar de os atuais estudos não abordarem a questão mais ampla da etiologia da síndrome intergeracional, eles fornecem a primeira validação biológica de que os sintomas descritos por descendentes como estando relacionados com o Holocausto parecem, na verdade, refletir um tipo de resposta pós-traumática. A melhor conclusão a partir desses estudos, até esta data, é que os descendentes de sobreviventes do Holocausto podem ser mais psicológica e “biologicamente” vulneráveis ​​ao estresse decorrente de traumas, por uma série de razões ainda a serem elucidadas.

          Nos estusos de Rachel Yehuda (1998; 2015), a hipótese mais consistentesobre da tramissão do trauma transgeracional em descedentes de sobreviventes do holocausto afirma que o trauma é transmitido pelas emoções e  sentimentos presentes nas narrativas dos sobreviventes. Esta hipótese comprovado por Yehuda é compátivel com  as afirmações de Margareh Wilkinson na obra  Changing minds in therapy(2010).

Considerações Finais

Em suma, os resultados das pesquisas de Yehuda (1998) indicam que os níveis baixos de cortisol em descendentes de sobreviventes do Holocausto foram associados com a tendência maior desses indivíduos para sofrer a angústia decorrente do  trauma do Holocausto e ter sintomas de TEPT, em resposta a eventos relacionados com o Holocausto de que eles ouviram falar (YEHUDA et al., 1998).   

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