A Religião na Psicologia Analítica de Carl Gustav Jung

Antonio Maspoli

A crise da razão. Arquétipo, mito e símbolo na psicologia da religião de Carl Gustav Jung

Resumo: Freud construiu sua teoria sobre o pressuposto aristotélica que prefigurava a mente humana como uma tábula rasa. Este conceito encontra-se na base da conceituação da libido e do inconsciente freudiano. Jung, por seu turno construiu sua teoria sobre a libido e sobre os arquétipo a partir do substrato platônico e agostiniano. A neurociência trouxe novos conceitos que possibilitaram a reformulação do conceito de de libido, de energia para informação. Atualmente com teóricos como Jean Know e Margareth Wilkinson esses aspectos da teoria junguiana foram relacionados a neurociência. Tomando o sistema computacional como modelo podemos afirmar que sujeito herda apenas um sistema operacional capaz de decodificar o software. O arquétipo seria apenas uma chave capaz de decodificar as informações como os neurônios espelhos, por exemplo. No entanto a ciência não prescinde dos símbolos, mitos e ritos em suas formulações teóricas. A partir dessa perspectiva essa pesquisa busca: a) analisar os conceitos de arquétipo, símbolo, mito e rito na psicologia analítica em suas relações com a neurociência; b) propõe uma crítica ao modelo cientificista em psicologia refirmando o valor do símbolo, do mito e do rito para a saúde mental.

Palavras Chaves: Símbolo, Mito, Rito, Arquétipo, Informação

Abstract: Freud built his theory on the Aristotelian assumption that prefigured the human mind as a tabula rasa . This concept is based on the concept of libido and the Freudian unconscious. Jung in turn built his theory of libido and on the archetype from the Augustinian and Platonic substrate . Neuroscience has brought new concepts that allowed the reformulation of the concept of libido, energy for information. Currently theorists like Jean and Margaret Wilkinson Know these aspects of Jungian theory were related to neuroscience. Taking the computer system as a model we can say that person inherits only one operating system capable of decoding software . The archetype would be only one key can decode the information as mirrors neurons , for example. However science does not discard the symbols , myths and rituals in their theoretical formulations . From this perspective this research seeks to : a) analyze the concepts of archetype, symbol, myth and ritual in analytical psychology in its relations with neuroscience , b ) proposes a model critique of scientism in psychology refirmando value of symbol , myth and rite for mental health .

Key Words: Symbol, Myth, Rite , Archetype , information,

Introdução

Com o advento da técnica moderna, os avanços científicos e a secularização da vida, os mitos, os ritos e mesmo a religião foram perdendo seus fundamentos tradicionais. A ousada tentativa de conceber o universo como humanamente significativo já não é mais creditado somente a religião. O homem ocidental contemporâneo vive então, em um contexto cultural demarcado pela fragmentação das grandes cosmovisões. Esta fragmentação produziu o pluralismo, o relativismo, e uma profunda crise de valores e de idéias. Crise esta, que talvez seja o resultado da postura essencialmente racionalista, adotada no século XX. O homem norteado pela ciência moderna, cultua a razão, embasa sua existência no racionalismo, na física newtoniana e na filosofia cartesiana. E assim obteve avanços inigualáveis no campo da ciência, e da tecnologia, porem reduziu a sua humanidade, à sua racionalidade. Esta atitude produziu um reducionismo cientificista, afastando-o das crenças que durante séculos tiveram um profundo significado para a sua existência tais como o mito, o rito, a religião e a própria intuição.

A ciência avançou construindo um modelo de mundo onde o mito, a imaginação, o sonho e o símbolo fazem parte do passado. Novos signos foram produzidos e transformados. O intelecto e o entendimento tomaram o seu lugar, e a máquina e o computador geraram os novos símbolos que alimentam a imaginação humana. O símbolo agora identificado com a máquina perde seu mistério, perde seu caráter vivo, perde seu aspecto lúdico e sagrado. A humanidade pouco a pouco deixa escapar a capacidade de reagir ao símbolo como um jogo lúdico e poético.

Os mitos e os ritos e a religião que em outros tempos eram consagrados pelos valores de um grupo social, como sua primeira teoria do conhecimento, foram relegados a segundo plano, se não esquecidos mesmo. O homem ocidental vivencia conflitos intermináveis opondo a razão a emoção, a ciência a religião, a racionalidade a fé, sem contudo encontrar nessa crise da racionalidade elementos de uma profissão de fé que lhe dê sentido e significação. A crise da razão apenas fragmentou as grandes cosmovisões. Não erigiu nada em seu lugar.

O homem moderno não entende o quanto o seu racionalismo (que lhe destruiu a capacidade de reagir aos símbolos numinosos) o deixou à mercê do submundo psíquico. Libertando-se das superstições (ou pelo menos pensa tê-lo feito), mas neste processo perdeu seus valores espirituais em escala positivamente alarmante. Suas tradições morais e espirituais desintegraram-se e, por isso, paga agora um alto preço em termos de desorientação e dissociação universais (JUNG, 1963, p. 93).

Freud pregava que ciência traria a humanização em seu bojo. Carl Gustav Jung sublinha que à medida que aumenta o conhecimento científico diminui o grau de humanização do nosso mundo, a alma do mundo encolhe e a alma humana se recolhe, perde-se no relativismo e na subjetividade. No passado, o homem percebia as manifestações externas do cosmo como reais, à medida que uma verdade mais alta, até mesmo de natureza divina, exprimia-se através dele, com isso o próprio mundo tornava-se reflexo de formas mais elevadas e complexas da existência. Estas formas serviam de parâmetros para o desvelamento do mistério.

“O estudo desse dilema e o desejo de o resolver conduziram-me às seguintes reflexões: o conflito entre a Natureza e o Espírito, mais não é do que a redução da essência paradoxal da alma, a qual possui um aspecto físico e um aspecto espiritual que não parecem contradizer-se, senão porque, em última análise, não lhe apreendemos a essência.”(JUNG, 1975, p. 64).

O homem primal comungava da harmonia com a natureza, sentia-se parte dela, e permanecia na convicção que dela obtinha alimento para sua alma e para seu corpo. A natureza lhe oferecia ainda respostas para suas dúvidas. Tudo isto se perdeu diante das explicações científicas. O homem é parte da natureza. Nesse movimento aliena-se na natureza e propor a fundação de uma natureza humana, como se essa natureza humana existência sem a natureza não humana. Nessa alienação homem e natureza perdem seu mistério.

O trovão já não é a voz de um deus irado, nem o raio o seu projétil vingador. Nenhum rio abriga mais um espírito, nenhuma árvore é o princípio de vida do homem, serpente alguma encarna a sabedoria e nenhuma caverna é habitada por demônios. Pedras, plantas e animais já não têm vozes para falar ao homem e o homem não se dirige mais a eles na presunção de que possam entendê-lo. Acabou o seu contato com a natureza, e com ele foi-se também a profunda energia emocional que esta conexão simbólica alimentava (JUNG, 1964, p. 95):

Em lugar de ouvir a natureza como faziam os oráculos gregos, o homem contemporâneo distingue-se da natureza(VERNANT,2002). Já não se considera mais parte desta. Agora para suprir o vazio produzido por esta separação faz um discurso sobre a natureza. Seu discurso, porém não da conta da alienação que este distanciamento produziu. Nem o conceito de natureza humana tão propalada na academia resolve seu paradoxo. O vazio aumenta, e na mesma proporção, o seu vazio existencial. Jung conceitua que o homem isolou-se não só da natureza, isolou-se da natureza de si mesmo, e até mesmo, isolou-se do próprio cosmos. E esta fragmentação prefigurou a perda gradativa das implicações simbólicas das grandes cosmogonias e cosmovisões que lhe davam sustentação. Finalmente o homem aliena-se de Deus.

“A cisão da alma é para o primitivo, como para nós, incoerente e doentia. Chamamos-lhe conflito, nervosidade, demência. Não foi por erro que a narração bíblica da Criação estabeleceu uma harmonia plena entre as plantas, os animais, os homens e Deus no símbolo do Paraíso, no início de todo o devir psíquico e discerniu o pecado fatal neste primeiro esboço de consciência: ‘Sereis como deuses, conhecereis o Bem e o Mal.’(JUNG, 1975, p.81).”

Antes de qualquer afirmação é importante ressaltar que em algumas referências à psicologia analítica no Brasil, tanto sobre a vida, quanto sobre a obra de Jung, as primeiras traduções das obras sobre psicologia da religião deste autor, podem ter contribuído para distorcer a sua imagem e conspirado para apresentá-lo como um místico.

O léxico e a biografia de Jung (marcada pelos estudos sobre a religião) muitas vezes levaram à imagem distorcida do criador da psicologia analítica como místico. Comparada com a psicanálise freudiana (cujos conceitos estariam estruturados sobre objetos palpáveis, como sexualidade e pulsões), a psicologia jungiana lidaria com conceitos alicerçadas sobre a recorrência de representações culturais, mas para os críticos da metapsicologia jungiana – nada garantiria que os arquétipos e o inconsciente coletivo, por exemplo tivessem causa psicológica empiricamente demonstrável (BYINTON, 2006, p. 10).

Assim, na base da visão junguiana da psique encontra-se a idéia de uma interação de fenômenos somáticos, intrapsíquicos e pessoais na vida de cada ser humano. Jung referia-se a esses elementos vivos e indissociáveis como oriundos de um unus mundus, termo emprestado da filosofia oriental, que significa um mundo uno, ou seja, unidade original não diferenciada. Como exemplifica Salman (apud Eisendrath & Dawson, 2002), as descobertas recentes sobre o DNA refletem esse tema: toda a vida animada, de uma folha vegetal a um ser humano, é formada dos mesmos componentes de material genético, diferindo-se apenas em sua arquitetura e combinação formam a teia da vida.

Na obra O homem e a descoberta da sua alma, (JUNG, 1974) nota-se a reafirmação de Jung que apesar do mundo do sujeito e do objeto, consciente e inconsciente, tenha sido dividido em nome da adaptação, estes deveriam ser reunidos em nome da saúde. Essa união significa para Jung a totalidade da psiquê, ou seja, ao Si-mesmo o self (toda a psique). Jung postula que a análise deveria ajudar o paciente em seu processo de individuação, a tornar-se ele mesmo, em toda sua potencialidade. No processo psicológico, os relacionamentos sujeito-objeto, consciente-inconsciente podem e devem ser re-integrados em um todo subjetivamente significativo. Em outras palavras, o objetivo da análise é facilitar o processo de reconciliação com o inconsciente, bem como o de acompanhar o paciente no aprendizado de suas dificuldades atuais e futuras. De modo neurocientífico é integrar as memórias implícitas nas memórias explicitas.

O Conceito de Libido e de Informação em Carl Gustav Jung

Nessa perspectiva, apesar das contestações dirigidas à psicologia analítica contra o conceito tradicional de arquétipo, vários teóricos, junguianos e não junguianos, acreditam que o desenvolvimento da neurociência, a nova ciência da mente, como a denominou Margareth Wilkinson e Jesn Knox nos últimos anos, possibilitará a compreensão das bases neurológicas do funcionamento arquetípico, além de promover a leitura da obra de Jung por outra ótica ainda mais próxima da objetividade científica. Nessa nova maneira de ver o conceito de energia foi substituído pelo conceito de informação. No entanto descrevermos abaixo o conceito tradicional de libido em Freud e em Jung pela relação desse conceito com nosso objeto de estudo: a religião com símbolo (WILKINSON, 2010; KNOX, 2011).

O termo libido é um dos construtos teóricos basilares da teoria psicanalítica. Inicialmente concebido por Freud como uma pulsão, instinto ou energia de natureza iminentemente sexual, uma força instintiva específica. O conceito de libido foi posteriormente reformulado para incluir em sua definição duas pulsões vitais: eros e tanatos. Eros seria a energia ou princípio da vida e tanatos pulsão de morte. Mesmo com esta modificação, no entanto, não há dúvida entre os freudianos e neofreudinaos de que a libido é uma energia de natureza puramente sexual.

Carl Gustav Jung , contudo, rompe com a concepção pansexualista de Freud, com a publicação da obra Wandlungen und Symbole der Libido (Transformações e Símbolos da Libido), publicado em 1911/1912. Nesta pesquisa Jung expõe o curso do desenvolvimento da libido na evolução da esquizofrenia, desde a sua etiologia, até a dissociação completa. Jung amplia então o conceito de libido para designar a energia psíquica em geral, presente em toda a natureza. A elasticidade deste conceito compreende não apenas a energia do psiquismo humano, inclusive aquela de natureza sexual, mas abarca também a própria energia do universo, a alma mundi.

Como o conceito aplicado de energia logo se hipostasia nas forças

(os instintos, os afetos e outros processos dinâmicos), o seu caráter concreto pode ser expresso adequadamente, a meu ver, pelo vocábulo libido, pois concepções semelhantes se utilizaram de denominações parecidas, desde tempos remotos, tais como a vontade de Schopenhauer, a arque de Aristóteles, o eros de Platão, o amor e o ódio dos elementos de Empédocles ou élan vital de Bérgson. (JUNG, 1998, p. 28).

A concepção de libido de Jung rompe com o pansexualismo freudiano e inaugura o panpsiquismo que dominará a psicologia analítica numa perspectiva pan energética. O conceito de libido formulado por Jung em 1912, calcado no neoplatonismo e no idealismo alemão, abrange todos os fenômenos de natureza energética existente no universo. Desta energia Jung deriva a libido, os conteúdos da bioenergia ou energia vital. A libido seria a base da energia psíquica que circula pelo sistema nervoso central e periférico.

Propus que a energia vital hipoteticamente admitida fosse chamada libido, tendo em vista o emprego que tencionamos fazer dela em psicologia, diferenciando-a, assim, de um conceito de energia universal conservando-lhe, por conseqüência, o direito especial de formar seus conceitos próprios. Fazendo isso, não tenho a menor intenção de adiantar-me dos que trabalham no campo da bioenergética, mas tão somente dizer-lhes com toda a franqueza que empreguei o termo libido em vista do uso que dele faremos em nosso estudo. (JUNG, 1998, p. 16)

Com esta reformulação do conceito de libido estava posto o machado à raiz da árvore psicanalista. A libido não se aplica somente aos conteúdos de natureza puramente sexual, amplia-se para incluir todos os aspectos da natureza humana: a mente, o corpo, a linguagem, a sexualidade, a alimentação, o mito, a religião, a saude, a doença a arte, o jogo, o trabalho, o amor, o ódio, e todas aquelas atividades humanas ligadas a cultura. O positivismo freudiano não poderia admitir este novo postulado e o rompimento entre Freud e Jung estava consumado.

Ao perceber no Id o instinto de individuação que busca a totalidade, a criatividade de Jung transbordou a moldura materialista pansexual da psicanálise. Em 1912, Jung publicou o livro Símbolos de Transformações, no qual expandiu o conceito de libido para torná-lo sinônimo de energia psíquica, expressão de todo e qualquer símbolo e não somente da sexualidade. (BYINGTON, 2006, p. 8)

Birman aponta outros aspectos responsáveis pelo rompimento entre Freud e Jung: a rivalidade científica entre os dois; a concepção jungiana sobre o delírio na esquizofrenia como transformação da libido e não somente como expressão da sexualidade proposta por Freud; as críticas de Jung ao método psicanalítico da livre associação verbal, que segundo este, levaria a dissociação e não a cura e o conceito de libido,(BIRMAN, 2006). E ainda o sionismo freudiano. Este pesquisador, contudo, sustenta com Byington,( BYINGTON, 2006) que no epicentro da cisão entre Freud e Jung existe uma questão epistemológica: Freud era filosoficamente materialista, ligado a tradição aristotélica. Já Jung era idealista, portanto, neoplatônico.

Como grande intuitivo que era, Jung certamente previu que sua nova concepção da libido seria incompatível com a presidência da Sociedade Psicanalítica Internacional e, pior ainda, com sua filitude científica de Freud. O inevitável aconteceu. O filho cresceu mais que o pai, daí em diante caminhou sozinho para fundar sua própria psicologia analítica, centrada na realização arquetípica da personalidade (BYINGTON, 2006, p. 8)

Sigmund Freud sustentava em seu conceito de inconsciente a concepção aristotélica da tabula rasa. O sujeito nasce sem nenhum conhecimento. Não existe a hipótese de conhecimento apriorístico. O inconsciente será formado das experiências do sujeito, especialmente aquelas adquiridas até os quatro anos de idade. Jung por outro lado acreditava na formulação platônica de que existe pelo menos em potência, a possibilidade do conhecimento inato. O sujeito nasce pelo menos com a capacidade de reconhecer o conhecimento (JUNG, 1989, p. 83-135; ELLENBERGER, 1974, pp. 345-469). Hoje pode-se afirmar que sujeito nasce com um sistema operacional capaz de operacional, decifrar, compreender e apreender todo o conteúdo simbólico da cultura humana.

Freud construiu sua teoria sobre o pressuposto aristotélica que prefigurava a mente humana como uma tábula rasa. Este conceito encontra-se na base da conceituação do inconsciente freudiano, que em linhas gerais não passa de uma espécie de quarto de despejo para o repositório das repressões sexuais infantis ocorridas antes da dissolução do Complexo de Édipo. Jung, por seu turno construiu sua teoria sobre o substrato platônico e agostiniano dos arquétipos que reafirmava em nível psicológico a possibilidade do conhecimento a priori (JUNG, 1989, p. 83-135). ). Hoje com Jean Know e Margareth Wilkinson esses aspectos da teoria junguiana foram relacionados a neociência. O inconsciente coletivo corresponde as memórias implícitas e o inconscientes pessoal corresponde as memórias explícitas (WILKINSON, 2010; KNOX, 2011). Não existe conhecimento a priori. Tomando o sistema computacional como modelo podemos afirmar que sujeito herda apenas um sistema operacional capaz de decodificar o software. O arquétipo seria apenas uma chave capaz de decodificar as informações como os neurônios espelhos, por exemplo.

Entretanto, nos últimos anos, o desenvolvimento das neurociências vem possibilitando a leitura da obra de Jung por outro viés. Como escreve Nairo de Souza Vargas (‘Terapia psiquiátrica e bases neurobiológicas do apego social’), revista jungiana, nº 16,) Jung propõe os arquétipos como padrões de comportamentos básicos, herdados enquanto espécie(…) especificamente, o que Jung chamou de arquétipo da Grande Mãe contém exatamente a matriz de que o ser humano é dotado de se apegar ao outro dentro de um padrão, no caso o materno, referindo-se à tendência gregária de nossa espécie. Nessa perspectiva, vários teóricos jungianos acreditam que o desenvolvimento das neurociências possibilite compreender (ainda nas palavras de Vargas) as bases neurológicas do funcionamento arquetípico (BYINTON, 2006, p. 10).

Na concepção de Jung os processos psíquicos são representações da energia universal que se acham gravadas no espírito humano desde tempos imemoriais através das representações coletivas as quais ele denominou arquétipos. Observa-se que muito do que primitivamente designava-se por espírito, daimon, ou númen não passa de representações pré-animistas desta energia. Jung admite a existência de uma estrutura de estreita causalidade psíquica, de sorte que a energia psíquica aparece, nas suas concepções, como uma quantidade constante, suscetível, entretanto, de se transformar e de se deslocar no tempo e no espaço, obedecendo ao princípio físico da entropia. No tempo, a libido tanto pode ter uma ação regressiva, voltada para o passado, quanto teleológica, direcionada para ao futuro. O tempo da libido é o tempo kairós em oposição ao chronos. O kairós que compreende todos os tempos: o presente, o passado e o futuro. No espaço a libido pode voltar-se para o sujeito na introversão, ou para o mundo, na extroversão. Jung concebeu a psique como um sistema auto-regulador da libido o qual tende sempre para o equilíbrio dinâmico entre os opostos.

“O princípio da equivalência é uma proposição da teoria energética de grande valor prático. A outra proposição necessária e complementar é o princípio da entropia. As transformações da energia só são possíveis graças às diferenças de intensidade, presentes no interior de um sistema. Segundo o princípio de Carnot, o calor só pode transformar-se em trabalho, quando passa de um corpo mais quente para um corpo mais frio. Mas o trabalho mecânico converte-se constantemente em calor, que não pode voltar a se converter em trabalho, em virtude de sua intensidade mais baixa. Deste modo, um sistema energético fechado tende pouco a pouco a reduzir suas diferenças de intensidade a uma temperatura constante, o que exclui qualquer modificação posterior. É o que se chama morte térmica.” Jung (JUNG, 1998, p 24).

Essa concepção de transformação da energia no pensamento de Carl Gustav Jung foi substituído pelo conceito de transdução. Segundo Denise Ramos, o fenômeno da transdução é aquele que transforma ou converte uma forma de energia ou informação em outra. A transdução ler o corpo humano como um sistema de informações (genético, imunológico, hormonal, entre outros), que necessita de algum tipo de transdutor, isso é, de decodificação de um código de informações de um sistema para outra. Se esse modelo pode ser usado para explicar a doença, pelo princípio do pharmakon, isto é, o principio benéfico e maléfico da droga, pode ser aplicado a enfermidade e a cura. Esse pode também ser usado para explicar a sua cura (RAMOS, 2006, P. 69).

A transdução busca restaurar o equilibro do organismo. Este equilíbrio provém das profundezas ocultas do inconsciente que luta terapeuticamente para restaurar o equilíbrio energético do sistema na consciência. Por exemplo, quando a vida consciente de um sujeito é dirigida pela inflação da atividade racionalista e intelectual, o inconsciente pessoal entra em cena, liberando conteúdos intuitivos, sentimentais e, ou, emocionais por meio dos devaneios, sonhos, pesadelos, fantasias e até paixões desenfreadas, para reequilibrar o sistema.

Observamos este processo, por ex; no desenvolvimento de uma atitude relativamente permanente e relativamente inalterável. Depois de oscilações inicialmente violentas, os opostos tendem a equilibrar-se e surge pouco a pouco uma nova atitude, cuja estabilidade subsequentemente será tanto maior, quanto mais acentuadas tiverem sido as diferenças iniciais (JUNG, 1998, p.24-25).

Arquétipos, símbolos, mitos e ritos em Carl Gustav Jung

A via-régia para a exploração do inconsciente na psicanálise e na psicologia analítica é o sonho. Jung acrescentou ainda os devaneios, os sonhos acordados, as fantasias, a imaginação ativa ou sonho induzido, a linguagem simbólica, o trabalho, a arte e a religião. “O sonho nada mais é, que uma inspiração que nos vem dessa alma obscura e unificadora (JUNG, 1975, p. 89). Jung admite a existência de vivências especiais chamadas revelações, nas quais subitamente, e quase com força alucinatória, aparece ante o indivíduo uma imagem – ou uma idéia – totalmente desligada da corrente habitual do pensamento. A estes conteúdos psíquicos Jung denominou inconsciente coletivo de onde emergem os arquétipos.

O que nos resta são hoje os fragmentos que carregamos em nós, nessa camada profunda e aglutinadora da psique a que Jung deu o nome de inconsciente coletivo, que não se limita à nossa biografia pessoal, sendo antes um inesgotável lençol freático, um lençol de água oculto e protegido nas profundezas da terra. Se formos capazes de perfurar um poço artesiano que o atinja, essa antiga água matriz vem à tona e com ela voltam imagens, símbolos e mitos que podem reaparecer, como fantasmas que retornam do Além, em nossos sonhos contemporâneos, nos devaneios artísticos ou nos estados de criatividade absolutamente aberta. Ou então, tristemente, como imagens e atitudes à primeira vista impenetráveis nos delírios psicóticos (GAMBINI. 2000. Pp. 161-162).

O arquétipo é um conceito basilar da arquitetura teórica de Jung. O que liga o inconsciente com a consciência é o arquétipo. O arquétipo segundo sua classificação pertence a psique subjetiva em oposição à psique objetiva do ego. Os arquétipos admitem vários significados simbólicos, e adquire com freqüência nos sonhos, um caráter essencialmente profético. A neurociência considera os arquétipos como as chaves neuronais que desvelam os códigos linguísticos capazes de gerar, decodificar e apreender o conhecimento humano.

Crítico da psicanálise, Jung (JUNG, 1975) afirma que o conceito freudiano de inconsciente é limitado. Em Freud o inconsciente limita-se a designar o estado dos conteúdos reprimidos ou esquecidos nos primeiros anos de vida, ou seja, ele nada mais é do que o espaço de concentração desses aspectos recalcados. Freud sustenta, todavia, que tal instância psíquica é de natureza unicamente pessoal e adquirida. Freud foi o primeiro a formular uma teoria do arquétipo para sustentar sua hipótese sobre o complexo de Édipo. O complexo de Édipo seria uma forma de pensamento arcaico-mitológico – inconsciente. Após o rompimento com Jung, Freud nega completamente qualquer possibilidade de existência do arquétipo (JUNG, 1989, p. 83-135).

O inconsciente em Jung assume novos contornos. Torna-se um conceito mais abrangente para abrigar aquelas possibilidades de conteúdos mnêmicos hereditários bem como o conjunto de experiência do individuo que foram recalcados pela consciência. Assim o inconsciente tem duas camadas, uma camada mais ou menos superficial do inconsciente, mais próxima da consciência, de natureza própria, denominando inconsciente pessoal. Contudo, este repousa sobre uma camada mais profunda cuja origem remonta as experiências ou aquisições pessoais anteriores, sendo, portanto, inata. Tal instância, Jung chamou de inconsciente coletivo, uma estrutura psicológica de natureza universal. Essa esfera psíquica possui conteúdos e modos de comportamento que são comuns a todos os indivíduos (JUNG, 1975, p.109-168).

“Foram às investigações de Freud as primeiras a esclarecer a função redutora do inconsciente, limitando-se em geral, a interpretação freudiana essencialmente às camadas inferiores sexuais infantis recalcadas do individuo. Investigações ulteriores chamaram a atenção para os elementos arcaicos, isto é, para a sobrevivências funcionais, filogenéticas, histórica e supra-individuais que dormem no seio do inconsciente.” (JUNG, 1975, p. 272).

Jung relaciona os arquétipos aos eidos de Platão. O arquétipo seria uma possibilidade psicológica transmitida geneticamente desde os tempos primordiais, que pode ou não ser percebida pelo conhecimento consciente, posto que costuma se apresentar de forma inconsciente. Os arquétipos são representações coletivas que fazem referências as vivências típicas primitivas que serviram de substrato para a construção dos mitos, dos ritos, dos símbolos, das fábulas e da religião (JUNG, 2000).

Inicialmente Jung emprega o termo imagens arcaica para designar um fenômeno ou símbolo arquetípico, posteriormente ele utiliza a palavra platônica arquétipo. Jung tomou este conceito emprestado de Santo Agostinho, no livro das Confissões. Realmente o Bispo de Hipona emprestou este conceito de São João, o Evangelista. Em João, arquétipo se refere ao princípio, aos tempos e formas imemoriais, primordiais, no qual o Cristo, o Logos, criou a tudo o que se encontra no universo, e especialmente a vida (JOÃO 1:1-14).

A psicologia analítica postula que os conteúdos do inconsciente coletivo são os arquétipos, que seriam possibilidades psicológicas transmitidas geneticamente que possibilitam a aquisição da cultura, desde os tempos primordiais, podendo ou não ser percebida pelo conhecimento consciente. Os arquétipos são padrões mnêmicos de comportamento herdados e atualizados pela cultura. Dizendo de outro modo, os arquétipos correspondem ao sistema operacional do sujeito, que lhe possibilita desvelar o software da cultura (JUNG, 2000).

Saindo dos exemplos excepcionais, a forma como cada um de nós lida com dificuldades e desafios do cotidiano revela em boa parte as qualidades de nosso si mesmo. Isso nos remete ao conceito jungiano de inconsciente como fonte de criatividade e potencialidade, e não apenas como fonte e depositário de conteúdos reprimidos, imagens, vivências dolorosas cercadas pelos mecanismos de defesa do ego. Do inconsciente surgem os impulsos que tomam forma na matéria, de acordo com o espaço e o tempo de uma pessoa. (RAMOS e MACHADO, 2005, p. 42).

Jung lembra que na mesma proporção que os seres humanos são similarmente diferenciados, as suas correspondentes funções mentais são coletivas e universais. Essas circunstâncias explicam o fato de que as produções de povos e raças situados a grandes distâncias uns dos outros possui uma série notável de pontos de concordância (JUNG, 1920). Fica estabelecida, desse modo, uma ponte entre arquétipo e mito. Os arquétipos são provenientes do inconsciente coletivo. Esses seria a conservação dos remanescentes arcaico provenientes dos resíduos da longa jornada histórica da humanidade. Tais remanescentes permanecem adormecidos na experiência humana e podem surgir através das imagens arquetípicas as quais constituem as representações sociais. Os mitos seriam representações psicológicas, atemporais de caráter universal destes arquétipos cuja função é explicar e manter e ordenar as origens de fatos espirituais, psicológicos e morais.

Isto se deve ao fato de que todo ser humano nasce com o cérebro altamente diferenciado, que lhe permite a possibilidade de atingir uma rica função mental que não foi adquirida pelo homem apenas em sua ontogênese; na mesma proporção em que os seres humanos são similarmente diferenciados, as correspondentes funções mentais são coletivas e universais; essas circunstâncias explicam o fato de que o inconsciente de povos e raças situados a grandes distâncias uns dos outros possui uma notável série de pontos de concordância. Jung, (JUNG, 1920, p.451)

Aqueles aspectos do inconsciente coletivo que foram atualizados pela cultura e pela experiência na mente individual formam o inconsciente pessoal, que determina o caráter e a personalidade do sujeito. Os arquétipos são atualizados no inconsciente pessoal através dos mitos, dos ritos e dos símbolos.

Malgrado ou talvez pela sua afinidade com o instinto, o arquétipo representa o elemento autêntico do espírito, mas de um espírito que não se deve identificar com o intelecto humano, e sim com o seu spiritus rector spírito que o governa. O conteúdo essencial de todas as mitologias e religiões e de todos os ismos é de natureza arquetípica (JUNG, 1998, p.211).

O arquétipo atualiza o mito na consciência do sujeito tornando-o presente e atual. Na consciência, o arquétipo adquire caráter simbólico. O arquétipo atua, deste modo, como um facilitador das relações entre o inconsciente coletivo e o inconsciente pessoal e destes com a consciência. Através do símbolo o homem tem acesso à experiência mnêmica universal e estabelece contato com esta experiência em sua própria alma. O arquétipo possibilita a transdução da experiência universal na experiência pessoal. Neste sentido arquétipo e símbolo se equivalem.

“Importante aqui é entendermos que Jung usou o conceito de símbolo de acordo com sua etimologia: sym=juntar, unir; balein=em direção a uma meta, um objetivo. Nesse sentido symbalein significava na antiga Grécia, o ato de unir duas metades de uma mesma moeda que fora partida na separação de duas pessoas. Quando uma delas desejava enviar uma mensagem importante à outra, o mensageiro trazia consigo uma das metades da moeda. Desse modo, o destinatário da mensagem poderia verificar sua autenticidade ao constatar a perfeita união das duas metades (uma conhecida, outra incógnita) (RAMOS E MACHADO, 2005, p. 45).

O símbolo por meio do qual o mito, ou seja, um ser fundamentalmente invisível, fantasmático é atualizado, personificado e presentificado na consciência do sujeito transmuta-se em imagem penetrando na categoria geral de fantasia, de religião e de arte, muitas vezes, portador de um sentido, uma mensagem mesmo, para aquele sujeito que a possui. No passado, diante de fenômenos inexplicáveis como a queda de um raio, por exemplo, o homem construía uma interpretação razoável para compreender e transmitir as gerações futuras, o conhecimento adquirido daquele fato, e um mito era estabelecido para condensar e perpetuar tal conhecimento.

Já se levantaram muitas objeções contra esta concepção do mito, ou seja, a de que ele simboliza fatos psicológicos. Como se sabe, temos dificuldade de abrir mão da ideia de que o mito é de certo modo uma alegoria explicativa de processos astronômicos, meteorológicos e vegetativos. Dificilmente há quem negue a coexistência de tensões explicativas, porque temos provas convincentes de que o mito possui também um sentido explicativo. Além disso, convém não esquecer que a necessidade de explicação causal por parte do homem primitivo não é tão grande como a nossa. Ele ainda está, por assim dizer, bem pouco interessado em explicar as coisas, e mais em fabular (JUNG,1998, p.36).

O conceito junguiano de arquétipo explica o aspecto universal dos padrões de comportamento humano, tal como o esqueleto que estrutura e dá base ao corpo. Embora tenha a mesma autonomia e fisiologia, não há seres idênticos. Dessa forma, a maneira como cada pessoa atualiza os arquétipos depende de suas vivências pessoais, educacionais e socioculturais. Em cada época, os arquétipos mudam a roupagem como se apresentam, contudo sua estrutura e dinamismo básico permanecem. O conteúdo psíquico de natureza masculina da psique da mulher, que aparece no inconsciente feminino é o animus. Seu oposto, a anima, é o arquétipo compensador da psique masculina e simboliza a estrutura psicológica inconsciente da psique do homem.

O fator determinante das projeções da anima, isto é, o inconsciente representado pela anima, onde quer que se manifeste: nos sonhos nas visões e fantasias, ela aparece personificada, mostrando-se deste modo que o fator subjacente a ela, possui todas as qualidades características de um ser feminino. Não se trata de uma invenção da consciência, é uma produção espontânea do inconsciente. Também não se trata de uma figura substitutiva da mãe, pelo contrário: temos a impressão de que as qualidades numinosas que tornam a imagem materna tão poderosa originam-se do arquétipo coletivo da anima que emerge de novo em cada criança do sexo masculino (JUNG, 1975, pág. 11).

Nessa perspectiva, surge a seguinte questão: como os arquétipos, tais como a anima e o animus, vindos do inconsciente coletivo, se comunicam com a consciência? Já foi explicitado que para Jung (apud Ramos e Machado, 2005) que essa relação se dá através dos símbolos. Pode-se afirmar que a anima e o animus no inconsciente coletivo representam os dois lados de um todo ontológico indivisível na expressão do Gênesis 1:27: “Deus criou o homem à sua imagem, à imagem de Deus ele o criou: Homem e mulher os criou.”

Já se levantaram muitas objeções contra a concepção de que o mito simboliza fatos psicológicos. Dessa forma, há uma grande dificuldade das pessoas assumirem que os mitos são, de certa forma, alegorias explicativas de processos naturais (JUNG, 1998). Os mitos são representações simbólicas e pictóricas dos arquétipos. Nesse sentido, o mito não busca estabelecer relações científicas, mas apenas guardar uma verdade psicológica a ser transmitida de geração em geração. Além disso, sua estrutura é semelhante a fábula onírica, na qual o real e o imaginário fundem-se na construção de uma imagem fantástica e fantasmática capaz de ser lembrada e atualizada pelo sonhador.

Os mitos são outra coisa: são relatos – aceitos, entendidos, sentidos como tais desde nossos mais antigos documentos. Comportam assim, em sua origem, uma dimensão de fictício, demonstrada pela evolução semântica do termo mythos, que acabou por designar, em oposição ao que é da ordem do real por um lado, e da demonstração argumentada por outro, o que é o domínio da ficção pura: a fábula. Esse aspecto de narração (e de narração livre o bastante para que, sobre um mesmo deus ou um mesmo episódio de sua gestação, versões múltiplas possam coexistir e ser contraditórias sem escândalo) relaciona o mito grego ao que chamamos de religião, assim como ao que é hoje para nós a literatura. (VERNANT, 2002, p. 230):

O tempo do mito é o mesmo do sonho, é o kairós. No sonho o mito ganha viva, renasce para o sonhador. Assim, o mito é a fonte conhecida de representação onírica costumeira, o qual descreve uma situação em termos de verdade e de realidade psíquica interiores. O mito, portanto, segue essa mesma lei. Coomaraswamy (apud Withmont, 2004), postula que a narrativa mítica tem uma validade que ultrapassa o tempo e o espaço, e é verdadeira em todo momento e em todo lugar. Ademais, é exatamente por sua universalidade que ele pode ser narrado, com igual autoridade, de vários pontos de vista diferentes. Emma Brunner-Traut (apud WITHMONT, 2004, pág. 70).

Enquanto a natureza do julgamento racional exige que o homem forneça seu próprio sistema de referência, seu conjunto de condições para o questionamento das coisas, no mito, os objetos têm sua própria relação interna um com o outro; eles se encontram e interagem em um mundo próprio, oculto e desatento em relação ao questionador. Eles são suficientes e harmonizados entre si, assim constituindo sua própria verdade na dimensão do infinito. (…) Ele (o mito) é colocado sob a luz da dúvida, da crítica e da exigência de prova, e sob essa luz ele parece falso. O mito não é definição nem prova. Ele é evidente por si mesmo.

Encontra-se no dicionário de símbolos de Chevalier (2005), que na interpretação ético-psicológica, as figuras mais significativas da mitologia grega, em particular, representam uma função da psique. Além disso, as relações que elas exprimem à vida psíquica dos homens, divididas entre as tendências opostas vão da sublimação à perversão. Tal corrente permite, em linhas gerais, a realização de uma dramaturgia da vida interior. Outras interpretações vêem nos mitos uma representação da vida passada dos povos, com sua história, os heróis e suas façanhas. O mito seria uma dramaturgia da vida social ou da história poetizada.

Já para alguns filósofos, tais como Platão, sejam quais forem os sistemas de interpretação, os mitos ajudam a perceber uma dimensão da realidade humana e trazem à tona uma função simbolizadora da imaginação. Esta não pretende transmitir a verdade científica, mas expressar a verdade de certas percepções.

O que chamamos de mitologia grega? Grosso modo e essencialmente, trata-se de um conjunto de narrativas que falam dos deuses e heróis, ou seja, de dois tipos de personagens que as cidades antigas cultuavam. Nesse sentido a mitologia está próxima da religião: ao lado dos rituais, de que os mitos às vezes tratam de forma muito direta, ora justificando-os no detalhe dos procedimentos práticos, ora assinalando seus motivos e desenvolvendo seus significados, ao lado dos diversos símbolos plásticos que, ao atribuírem aos deuses uma forma figurada, encarnam sua presença no centro do mundo humano, a mitologia constitui, para o pensamento religioso dos gregos, um dos modos de expressão essenciais. (VERNANT, 2002, p. 30).

Vernant (VERNANT, 2002) também discorre sobre esse assunto. Para ele, quando se trata de mitologia grega, o que vem à mente é um conjunto de narrativas que falam de deuses e heróis, os seja, dois tipos de personagens que as cidades antigas cultuavam. Segundo ele, os mitos não são verdades absolutas impostas, mas relatos aceitos, entendidos e sentidos como tais desde os tempos mais remotos. A origem da palavra, mythos, remete a dimensão do que é psicológico, em oposição à ordem do real de um lado e a demonstração argumentada do outro, a fábula (VERNANT, 2002, p. 30).

De acordo com Withmont, o mundo do mito tem suas próprias leis e sua própria realidade. Nesse sentido, muitas vezes o mito é rejeitado como sendo algo inventado ou inverídico como uma tentativa primitiva, pseudocientífica de racionalizar fatos astronômicos, sazonais, sexuais ou históricos. Em linguagem corriqueira, o mito carrega o significado de algo inverídico, ou seja, se tomado de modo literal, o mito certamente não é verdadeiro. A forma como se pode entendê-lo refere-se ao que Jung chamou de verdade psíquica ou aquela descrição simbólica da dinâmica e da vivência psíquica. Em outras palavras, a verdade do mito é apenas acessível sob a ótica simbólica (WITHMONT, 2004).

Em suma, os mitos e os arquétipos, bem como as forças impulsionadoras que eles representam, não são construtivos nem destrutivos por si só. De acordo com Withmont, eles podem ser ambos, dependendo do modo como se integram na vida da comunidade ou do indivíduo, e do modo como são vividos em termos do aqui e agora. Estão-se conscientemente relacionados e reconciliados com as exigências éticas, eles serão construtivos, porque são os elementos através dos quais a vida recebe o seu impulso (WITHMONT, 2004).

Considerações Finais

O simbolismo religioso abre, pela sua linguagem universal, a possibilidade de se estudar as religiões comparadas e buscar unidade dos mitos e dos ritos que leva a compreensão da construção social da própria mentalidade humana (GIRARD, 1994). Daí pode-se destacar alguns aspectos essenciais à criação, utilização e transmissão do símbolo religioso:

a) A universalização do simbolismo religioso – a teoria sobre os arquétipos coloca o simbolismo religioso num contexto universal e esta universalização possibilita a unificação do sentido dos mitos, símbolos e rito, das mais diversificadas experiências religiosas sejam individuais ou coletivas. Esta unificação de sentidos serve de suporte psicológico na ausência de uma cosmovisão religiosa unificada.

b) A reafirmação do valor terapêutico do símbolo religioso pela integração na consciência individual. Na teoria de Jung (JUNG, 1980, 62): “As principais figuras simbólicas de uma religião constituem sempre a expressão da atitude moral e espiritual especifica que lhes são inerentes”.

Além do mais, Jung critica o esvaziamento espiritual de uma religião a partir do esvaziamento dos seus símbolos e cita, como exemplo deste reducionismo, o liberalismo protestante do século XIX, que aplicou os extremos da racionalidade positivista de Comte, Marx e Freud no estudo do campo teológico cristão e esvaziou o cristianismo daquilo que tem de essencial: a sua fé num Deus pessoal revelado nas Escrituras Sagradas, considerada a única regra de fé e de prática do cristão. Valorizando neste aspecto a revelação especial de Deus em Cristo, o símbolo do si-mesmo por excelência.

c) O caráter natural do simbolismo religioso a partir da revelação natural – da imago dei, registrada no inconsciente coletivo da humanidade. Este postulado faculta a pesquisa do simbolismo religioso sem esvaziar o seu significado espiritual. Jung (JUNG, 1980, p. 61)“Os enunciados simbólicos da antiga alquimia, do mesmo modo que os sonhos modernos, provêm do mesmo inconsciente e em ambos se reserva à voz da natureza”.

d) O caráter primordial do símbolo religioso – o homem, ao entrar em contato com este na vivência religiosa, recria a experiência primordial que lhe instaurou e desfruta das propriedades benéficas ou maléficas inerentes ao mesmo, revivendo, deste modo, a experiência primordial do tempo e do espaço arquetípicos.

O pensamento de Rubem Alves sobre o simbolismo religioso, esclarece um aspecto importante sobre este tema isto é: nenhum simbolismo religioso jamais é completo em si mesmo e conclusivo em sua linguagem embora aponte caminhos para o percebedor. A título de conclusão registraremos o seu pensamento sobre o Simbolismo Religioso.

Símbolos assemelham-se a horizontes. Horizontes: onde se encontram eles? Quanto mais deles nos aproximamos, mais fogem de nós. E, no entanto, cercam-nos atrás, pelos lados, à frente. São o referencial do nosso caminhar. Há sempre os horizontes da noite e os horizontes da madrugada. As esperanças do ato pelo quais os homens criaram a cultura, presentes no seu próprio fracasso, são horizontes que nos indicam direções. E esta é a razão pela qual não podemos entender uma cultura quando nos detemos na contemplação dos seus triunfos técnico-práticos. Porque é justamente no ponto onde ele fracassou que brota o símbolo, testemunha das coisas ainda ausentes, saudade de coisas que ainda não nasceram… (ALVES, 1991, p.22).

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VERNANT, Jean Pierre. Entre mito e política. Tradução: Cristina Murachco. 2.Ed. São Paulo: Editora Universidade de São Paulo, 2002.

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