O Tempo do Inconsciente e da Análise

Antonio Maspoli

Introdução

Santo Agostinho (1997, p. 323), nasConfissões”, afirma que os tempos, geralmente contados como três, na verdade, são considerados apenas um: o tempo presente, o tempo passado é aquele que já se foi, portanto, já não é, o tempo futuro é o que será, por conseguinte, não se pode garantir que exista nem mesmo como possibilidade. “Hume aponta para uma incômoda questão: temos absoluta certeza de que o Sol, que nasceu ontem e hoje, também nascerá amanhã mas, como chegamos a esta conclusão, se o seu oposto não é impossível? ” (CHAGAS, 1987, p. 377).

Resta o tempo que corresponde ao presente linear do grego koinê. Nesse presente contínuo, portanto, podemos afirmar que o tempo presente se desdobra em três: o presente das coisas passadas, o presente das coisas presentes e o presente das coisas das futuras. “O Kairós é o momento transitório no qual algo acontece à medida que o tempo decorre. ” (STERN, 2007, p. 29). O kairós é o tempo do sagrado, dos mitos, dos ritos e das celebrações e, às vezes, dos traumas. O tempo que se situa entre o alfa e o ômega (BÍBLIA, APOCALIPSE, – 22:13).

Seu sentido original – o tempo oportuno, o tempo de agir – deve ser contrastado com o khronos, o tempo mensurável ou tempo do relógio. O primeiro é qualitativo, o segundo é quantitativo. A palavra inglesa timing expressa algo de caráter qualitativo do tempo, e se falássemos de um timing de Deus em sua atividade providencial, este termo se aproximaria do sentido da palavra kairós. (TILLICH, 2005, p. 800).

Mircea Eliade (1992) observa que o homem secularizado, pós-moderno, só conhece o tempo khronos, o tempo monótono e pesado do trabalho. Falta-lhe, entretanto, o tempo do lazer e das festividades, pois, para ele, o tempo não tem mistério; o tempo é começo e fim, antes e depois, e, independentemente de seus diferentes ritmos temporais, o “[…] homem não religioso sabe que se trata sempre de uma experiência humana, onde nenhuma presença divina se pode inserir” (ELIADE, 1992, p. 61).

Não podemos conceber o tempo senão com a condição de distinguir nele momentos diferentes. Ora qual é a origem dessa diferenciação? Certamente, os estados de consciência que já experimentamos podem se reproduzir em nós, na mesma ordem em que aconteceram primitivamente: e assim, porções do nosso passado voltam a ser presente, mesmo distinguindo-se espontaneamente do presente. (DURKHEIM, 1989, p. 39).

O khronos é um tempo arbitrário que corresponde ao tempo histórico da experiência vivida. O khronos é o tempo da consciência, do lado esquerdo do hemisfério cerebral. O khronos situa o homem dentro do contexto histórico de passado, presente e futuro, o antes, o agora e o depois. Diante do khronos, todavia, a relevância do tempo recai sempre sobre o passado e sobre o futuro. O tempo presente parece fadado a desaparecer da experiência humana. O tempo presente parece escapar na narrativa, torna-se subjetivo. O khronos situa-se quase sempre num ponto em movimento em direção ao porvir.

Devolver o tempo à experiência é uma frase curiosa. Eis o que se encontra por trás dela: é fácil pôr um tempo linear, de relógio (chronos), em histórias sobre nós mesmos – o antes, o depois e o meio – tempo de nossas narrativas. Mas não é tão claro como se faz para se colocar o tempo subjetivo (o que quer que isso se revele ser) nas experiências que estão acontecendo agora. (STERN, 2007, p. 27).

O tempo subjetivo, o agora, é o kairós. O kairós é o tempo do inconsciente do lado direito do hemisfério cerebral. O tempo da mente corresponde ao tempo sagrado. “O tempo sagrado é pela sua natureza própria reversível, no sentido em que é, propriamente falando, um tempo mítico primordial tornado presente. ” (ELIADE, 1992, p. 81).

O tempo sagrado situa-se em outra dimensão. Ele permite ao homem, por meio do rito e do mito, do extase e até da análise, adentrar nessa outra dimensão de tempo e dela sair quantas vezes forem necessárias. Todo rito e toda celebração do sagrado possibilita a recriação do tempo primordial que deu origem ao rito e à celebração. Em sentido bíblico, esse tempo sagrado é o kairós. O kairós, a plenitude do tempo (BÍBLIA, GÁLATAS – 4:4) corresponde ao momento em que a manifestação de Deus irrompe na história. É a intervenção do sagrado no khronos.

O kairós é o tempo da mente, da percepção, da fantasia, do sonho e do sonhador. O kairós estrutura os conteúdos das memórias implícitas e explícitas nas narrativas. De tal forma que, quando o sujeito acessa um trauma, seja por meio da narrativa, seja por meio do sintoma, seja por intermédio do sonho, ele o faz no microcosmo do presente, no eterno fluir da consciência. O passado tanto influencia o presente quanto é influenciado por ele. O kairós interliga no tempo da mente o passado, o presente e o futuro.

Outra característica do momento presente que me intrigava era o fato de ele ter um trabalho psicológico a fazer. É preciso aglomerar e entender o momento enquanto ele está passando, e não depois, e voltar para a próxima ação. Com isso em mente, o título seguinte foi Kairós, a palavra grega para o momento propício, ou o momento em que algo vem a ser. Kairós é uma unidade de tempo tanto subjetiva quanto psicológica. Claramente, o momento presente precisa ter aspectos de kairós porque gera a necessidade de entender o que aconteceu no passado, o que está acontecendo agora e como agir em relação a isso. Ele requer uma completa apreensão dos acontecimentos no momento em que eles se desdobram. (STERN, 2007, p. 15).

Nem nas memórias implícitas existem lembranças puras do passado. Na reconstrução do passado pela narrativa, as memórias implícitas e explícitas se interpenetram. “Em suma, a intrincada interdependência entre o significado explícito e a experiência afetiva implícita fica clara no nível local do momento presente. ” (STERN, 2007, p. 222). A memória explícita de um acontecimento implícito é a totalidade do contexto de recordação do presente. “Durante o seu desdobramento, enquanto ele passa do horizonte do passado-do-presente para o horizonte do futuro-do-presente, ocorrem mudanças analógicas das categorias ao longo do seu curso. ” (STERN, 2007, p. 225).

Em resumo, a memória não é vista como uma biblioteca de experiências na qual as primeiras edições são mantidas em sua forma original e uma delas pode ser solicitada e trazida para o presente como uma lembrança a ser vivida fielmente. Ao contrário, a memória é vista como um conjunto de fragmentos de experiências. Estes são transformados numa experiência recordada inteira, da seguinte maneira: acontecimentos e experiências em curso no tempo presente atuam como um contexto (um contexto de recordação do presente) que seleciona, monta e organiza os fragmentos sob a forma de lembranças. (STERN, 2007, p. 224).

Considerações Finais

Em síntese, os mitos e os arquétipos, bem como as forças impulsionadoras que eles representam, não são construtivos, nem destrutivos por si só. Podem ser ambos, dependendo do modo como se integram na vida da comunidade ou do indivíduo, assim como do modo como são vividos em termos do aqui e agora. Se estiverem conscientemente relacionados e reconciliados com as exigências éticas, eles serão construtivos, pois são os elementos por meio dos quais a vida recebe o seu impulso.

O conceito de Kairós será de fundamental importância para se compreender o tempo presente e a presentificação do trauma nas narrativas dos quilombolas sujeitos desta pesquisa.

SANTO AGOSTINHO. Confissões. Tradução de Maria Luiza Jardim Amarante. São Paulo: Paulus, 1997.

CHAGAS, Carmo, et al. História do pensamento, do iluminismo ao liberalismo econômico. São Paulo: Nova Cultural, 1987.

ELIADE, M. Mitos, sonhos e mistérios. Tradução de Samuel Soares. Lisboa: Edições 70, 1957. (Coleção Perspectiva do Homem).

______. O Sagrado e o Profano, a essência das religiões. Lisboa: Livros do Brasil, 1992.

______. O Xamanismo e as Técnicas Arcaicas do êxtase. Tradução de Beatriz Perrone-Moisés e Ivone Castilho Benedetti. São Paulo: Martins Fontes, 2002.

STERN, D. N. O momento presente na psicoterapia e na vida cotidiana. Tradução de Celimar de Oliveira Lima. Rio de Janeiro: Record, 2007.

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