Retratos do Quilombo do Mel da Pedreira

Antonio Maspoli

Em 2010 este pesquisador recebeu a visita de um grupo de amigos liderados pelo empresário e apicultor César Valin Toledo. Nessa visita foi apresentado formalmente ao Quilombo do Mel da Pedreira. Em 2012, este pesquisador resolveu ir para Macapá, a fim de conhecer o Quilombo do Mel da Pedreira. Foi uma viagem longa. Cerca de cinco horas de avião, além das conexões em Brasília e em Belém do Pará. Ao chegar a Macapá, a surpresa foi o contraste entre a cidade e os outros 22 estados brasileiros onde este pesquisador já estivera realizando pesquisas de campo e outras atividades ligadas ao magistério, fazendo conferências ou mesmo em viagens de lazer.

O pesquisador hospedou-se em um hotel em Macapá e, de lá, deslocou-se para o Quilombo do Mel da Pedreira, onde foi recebido com festas pelo chefe do quilombo, Rio Solimões. Um homem inteligente, simples, quieto, tranquilo e de poucas falas – sábio!

Fui impactado com a chegada ao Quilombo. O espírito do Quilombo, as formas de vida da comunidade me impactaram pela simplicidade, pela cultura, um misto de cultura afro brasileira com a cultura indígena. Fui impactado também pela vitalidade de seus moradores, em meio à pobreza extrema (Anexo E – Fotografias 01 e 02).

Depois dos primeiros contatos este pesquisador retornou ao Quilombo do Mel da Pedreira em 2013, 2014, 2015 e 2016. Ao todo, foram cinco viagens, perfazendo um total de 60 dias de observação das comunidades quilombolas do Vale do Curiaú e do Quilombo do Mel. Este pesquisador permaneceu 40 dias no Quilombo do Mel, sempre hospedado na casa do Senhor Osvaldino, uma típica casa quilombola: construída de madeira e cercada de árvores, à beira do lago. Uma casa abençoada pela boa hospitalidade (Anexo E – Fotografias 03,04 e 05).

Ao chegar à casa de Osvaldino, pela primeira vez, um grupo de homens descarnavam um búfalo, chamado carinhosamente de bubalino. Haviam matado o bubalino para celebrar a nossa chegada. Chegara, este pesquisador, acompanhado da antropóloga Doutora Suzana Ramos Coutinho, da Mestranda em Ciências da Religião, Ana Kelly, e do Advogado e mestrando Robson Siqueira. Fomos recebidos com alegria, com festa, com hospitalidade, a hospitalidade humana, calorosa e simples da gente da floresta (Anexo E – Fotografia 06).

A cabeça do búfalo estava posta assustadoramente sobre a pia e as carnes espalhadas pelo chão, pelo cimento. A carne foi distribuída a cada família, de acordo com as posses e a posição social de cada família na hierarquia da comunidade. Depois, sentamo-nos para comer uma deliciosa picanha de búfalo. E aos homens foram servidas iguarias: testículos de búfalo e miolo de búfalo com coentro. Existem muitos meninos no Quilombo. Os homens dizem jocosamente que a culpa é do testículo de búfalo, que comem com gosto. E este pesquisador também comeu.

As conversas deste pesquisador com os líderes quilombolas nasceram espontaneamente a beira do igarapé ou ao pé do fogão de lenha, tomando café com um suculento bolo de mandioca. Numa dessas conversas as memórias de escravidão emergiram naturalmente. Os quilombolas falam das memórias da escravidão como emoção e sentimento como se tudo ainda estivesse acontecendo.

Ao longo dos últimos trinta anos este psicólogo tem perseguido a comprovação da hipótese de Carl Gustav Jung da transmissão transgeracional do trauma. De repente a vida colocou-me frente a frente com as memórias da escravidão e seus traumas decorrentes. Resolvi transformas as narrativas dos quilombolas, seus traumas e suas experiencias históricas de superação numa pesquisa de doutorado sabiamente orientada pela Dra. Denise Gimenez ramos no Programa de Pós-Graduação em psicologia clínica da Pontifícia Universidade de São Paulo.     Os resultados podem são colhidos ao longo do texto

          O conceito de trauma histórico intergeracional é um constructo válido para se compreender o impacto de genocídios, guerras, atos terroristas e/ou calamidades públicas sobre determinadas populações, como ocorreu, por exemplo, com os descendentes dos sobreviventes de campos de concentração do holocausto e com os sobreviventes da escravidão, os descendentes de escravos.

         A teoria do complexo cultural possibilita, por sua vez, analisar o impacto do trauma histórico intergeracional na produção de complexos que se desenvolvem inconscientemente, nessas populações, e minam os seus recursos. Esta pesquisa assentou-se sobre o método misto, em sua execução.

          A análise da produção cultural de 42 sujeitos quilombolas, homens e mulheres, do Quilombo do Mel da Pedreira, em Macapá – Amapá, realizou-se por métodos quantitativos e qualitativos: a observação participante; a observação etnológica e etnográfica; a entrevista sem dirigida; a análise de conteúdo; o Inventário de Autoconceito de Adriano Vaz Serra; a Escala de Autoestima de Rosenberg; e a análise estatística simples. A partir dessas teorias, métodos e observações de campo foram confirmadas as hipóteses a seguir: I. O trauma histórico intergeracional decorrente das memórias da escravidão permanece presente nas narrativas e na produção cultural de quilombolas. II. O trauma histórico intergeracional gera um complexo cultural de inferioridade na população quilombola. IV. Observa-se uma baixa autoestima na população quilombola como sintoma do complexo cultural. V. O complexo cultural afeta negativamente o modo de vida de quilombolas e contribui para o empobrecimento da população. VI. O que define a vida no quilombo é o conceito de resistência/resiliência. A Hipótese III, observa-se um baixo autoconceito na população quilombola como sintoma do complexo cultural; não se confirmou.

          Finalmente, quando se utilizou o modelo adaptado de Fatores Positivos e Preditores de Resiliência de Martha Kent e Mary C. Davis, os quilombolas saíram-se muito bem em seis dos oito itens avaliados. Isso demonstra a capacidade quilombola de adaptação, resistência e resiliência frente à extrema adversidade imposta pelo trauma intergeracional e pelo complexo cultural, geradores de empobrecimento e da exclusão social.

Para minha surpresa em 25 de agosto de 2015 a epigeneticista Raquel Yehuda publica os resultados de mais de vinte anos de pesquisas sobre o tema:  Mudanças genéticas associadas aos traumas sofridos pelos sobreviventes do Holocausto podem ser transmitidas aos filhos e, possivelmente, às gerações seguintes, sugere uma recente pesquisa americana.

A história do quilombo foi contada pelas memórias e narrativas dos próprios quilombolas e registrada por meio da pena deste pesquisador.

Dentre os 71 quilombos do Amapá  destacamos o Quilombo do Mel da Pedreira, objeto desta pesquisa. O Quilombo do Mel foi reconhecido, pela Fundação Cultural Palmares, em 18 de outubro de 2005, em documento no qual essa Fundação “Certifica que a Comunidade Mel da Pedreira, localizada no município do Macapá, estado do Amapá […] É REMANESCENTE DAS COMUNIDADES DOS QUILOMBOS[1].  

Essa pesquisa foi contato por Antonio Maspoli de Araújo Gomes no livro Trauma Trsngeracional e Resiliência na Diáspora Africana (2018) .

O Mel, como é carinhosamente chamado por seus moradores, é uma comunidade localizada a 36 km do centro de Macapá. No dia 13 de março de 2012, essa comunidade recebeu, do Ministério do Desenvolvimento Agrário, por meio do INCRA, o reconhecimento como Comunidade Remanescente de Quilombolas e a titulação e  posse de 2.620 hectares de terra

O Quilombo do Mel da Pedreira situa-se no baixo Amazonas, cuja densidade demográfica é de 3,96 hab/km², em contraste com o centro-sul, cuja densidade demográfica é de 617 hab/km² (PINTO et al., 2014). Portanto, o baixo Amazonas ainda é rarefeito de gente. O Quilombo do Mel da Pedreira faz divisa, ao norte, com o Igarapé do Caju e Terras de Quem de Direito; ao sul, com o Canal do Mato Grande; a leste, com o Canal do Mel; e a oeste, com a margem direita da estrada de ferro Amapá[2].

A origem do Quilombo do Mel perde-se nas brumas da segunda metade do século XVIII e é contada de duas formas. Na primeira narrativa, o quilombo remonta às suas origens africanas. Na segunda versão, o quilombo nasce em 1952. As duas narrativas não são excludentes, são complementares.

Quanto às suas origens africanas, Rio Negro[3], intelectual orgânico do quilombo, conta que os ancestrais dos remanescentes do Quilombo do Mel chegaram a Macapá de Navio Negreiro. Vieram do Marrocos para construir o Forte de São José, na Vila de São José de Macapá, em meados do século XVIII. Essa narrativa coaduna-se com a história dos africanos que vieram de Mazagão, no Marrocos, contada por Laurent Vidal (2007), e reforça as narrativas históricas dos escravos do Amapá, contadas recentemente por Luna (2011) e desde sempre cantadas na letra da música do Marabaixo no Encomtro dos Tambores.

Vinhemos lá de Marrocos

Para uma vila habitar

Revivendo nossa história num cantinho do Amapá

Sopra o vento africano,

O navio sai por outro lado

Em seus porões desumanos

Vem nossos antepassados

Saímos lá da mãe África

Com destino a Belém

Deixamos nossas famílias e nosso amigos também.[4]

A letra do Marabaixo é confirmada pelas memórias de Rio Amazonas, um ancião de 80 anos, que fala com garbo das suas raízes africanas e marroquinas e dos seus ancestrais escravos que fugiram da escravidão e aquilombaram-se na floresta amazônica.

 Somos descendentes de escravos fugitivos que vieram trabalhar aqui no Forte, na Fortaleza de Macapá. Vieram como escravos, né? E aqui eles conseguiram também fugir. Era fugitivo. Vieram do Marrocos. Porque o meu pai era marroquino. Nasceu no Marrocos. Era pra lá. O pai do meu avô era marroquino. É de Marrocos. É da África mesmo. Está enterrado aí o meu pai, o pai do meu pai que é africano, e a minha vó não era.[5]

A memória das origens africanas e marroquinas dos quilombolas é recontada pelos mais jovens. Todavia os jovens contam a história sem demonstrar qualquer galhardia e, às vezes, até com certa vergonha das suas origens. A história de lutas do quilombo se perdeu em meio à luta cotidiana para vencer o preconceito contra os negros, que impera em Macapá, para onde alguns se deslocam na tentativa de cursar o Ensino Médio. O poema da música corrobora o depoimento de Rubi, 20 anos, membro do Quilombo do Mel da Pedreira:

Bom, a gente tem a referência de Mazagão Velho. Tá? Então, Mazagão Velho… existia um Mazagão na África, né? Eles foram transferidos para cá de Mazagão Velho lá da África. Da Fortaleza de Mazagão. Eles transferiram para cá para o Brasil algumas famílias, e fundaram Mazagão Velho. Então, tem toda uma história. Se você entrar na história de Mazagão, aí tem assim bem em detalhamento. Então, eles têm lá essa parte mais forte da história, que dá um pouco da origem dos africanos no Brasil. Salvo engano, eu não sei se era a região do Marrocos… eles falam muito do Marrocos. Que veio esses negros para cá, para a região do Amapá. Então, a gente tem uma referência do Marrocos. Eu não sei se nós teremos de outra região da África. Mas essa do Marrocos é o que é mais… É mais recorrente. É o que a gente mais escuta.

As memórias coletivas de Rubi mantêm uma intertextualidade muito próxima da letra do Marabaixo. Mazagão aparece não apenas nas letras das músicas, mas também nas narrativas, como um espaço da memória que aponta para vários lugares e imagens superpostas reunidas no cadinho da memória. Assim, Mazagão pode se referir tanto à Fortaleza de Mazagão, no Marrocos, quanto ao Quilombo de Mazagão, no Macapá, ou à cidade de Mazagão Velho, no Amapá.

Juntei todos os escravos

Com uma dor no coração (bis)

Subimos de Rio acima

E chegamos em Mazagão (bis)

Subimos de Rio acima

Chegamos em Mazagão. (bis)[6]

Os moradores do Quilombo do Mel  apresentam-se orgulhosamente como descendentes de negros que fugiram da escravidão quando da construção do Forte de São José do Macapá, nos idos da segunda metade do século XVIII. Esses negros que fugiram da construção do forte subiram o vale do rio Curiaú até as margens do rio Pedreira. No Vale do Curiaú, existem atualmente 42 quilombos. Em todo o Macapá, existem 71. Rio Negro, 70 anos: “Todos vieram da África de Navio Negreiro para construir o Forte de São José do Macapá”.

Quanto às suas origens, na África, eles afirmam peremptoriamente, taxativamente, que vieram do Marrocos, tanto que há um quilombo que se chama Mazagão Velho, em referência à província de Mazagão, que existe no Marrocos; assim, eles seriam marroquinos. O Marrocos forneceu escravos para Portugal e para o Brasil em menor escala que os outros países, mas forneceu, com toda a certeza. A narrativa dos quilombolas quanto ao Marrocos coaduna-se com a narrativa histórica sobre a Fortaleza de Mazagão, no Marrocos, e o exílio de seus moradores e seus escravos em Macapá, em meados do século XVIII (VIDAL, 2007).

Quando se refere à história recente do Quilombo, Rio Negro, 70 anos, volta-se para a família de Antônio Bráulio de Souza, em 1952, que teria dado origem a parte dos membros da atual comunidade e é considerado uma espécie de patriarca. Outra parte significativa dos moradores do Mel veio do Quilombo de São Pedro dos Bois, especialmente as mulheres. Até hoje, os homens do Quilombo do Mel costumam casar-se com as mulheres do Quilombo dos Bois, que faz divisa com o Quilombo do Mel. Rio Negro, 70 anos.

O Cardoso foi o primeiro que casou, e foi buscar um dos Bois. A Mãe Joana, que é a mãe da Cristina. Do Oswaldino, também. Aí um outro… o meu irmão caçula, que eu acho que é esse que aí está no carro…[…]

Sem dúvida, a família mais lembrada no quilombo do Mel é a de Bráulio, considerado o patriarca da comunidade atual. Rio Negro, 70 anos:

Com certeza. Pois é, então é assim, a gente, somos afrodescendentes de parte da minha mãe. Minha mãe que era descendente de africanos, né? Da família Ramos, que se instalou em Macapá para construir o Forte de São José de Macapá. Daí a origem do Bairro Julião Ramos. Donde foi até dando o nome do bairro, Julião Ramos, que era o patriarca dos Ramos. E daí veio o meu bisavô, que veio morar mais aqui fora da cidade, região da pedreira, que se chamava Manuel Hilário Ramos. E o pai da minha mãe se chamava Raimundo Avelino Ramos. E a minha mãe vem ser Alda Augusta Ramos de Souza, porque casou com meu pai, que era Souza. E meu pai era Antônio Bráulio de Souza. Meu pai está ali, ele está ali prendado no nome do colégio. Então é assim, é uma história muito longa.

O atual Quilombo do Mel da Pedreira originou-se da chegada dos patriarcas, Antônio Bráulio de Souza e Alta Augusta Ramos de Souza, vindos da localidade de Limão, do Quilombo de São Pedro dos Bois. Eles se alojaram nas margens de um igarapé e ali deram o nome de Ressaca do Mel, em 11 de maio de 1954, pois havia muita presença de abelhas nativas, sem ferrão, na região, das quais extraíam o mel. Essas abelhas são a base da apicultura do Quilombo do Mel até os dias de hoje. Rio Pedreira, 37 anos:

Isso, tudo se iniciou pelos meus avós, que eles são oriundos de São Pedro dos Bois e Ambé. E vieram pra cá com o intuito de criar suínos e trabalhar na agricultura, porque o povo lá de São Pedro dos Bois trabalhava muito com a questão da pecuária e ficava meio complicado trabalhar agricultura e pecuária no mesmo local. E com esse desejo eles vieram pra este lugar, onde tudo começou. O pessoal de São Pedro dos Bois, a origem deles, direta mesmo, foi da época da criação, da construção da Fortaleza de Macapá e os primeiros moradores foram fugitivos. Eram escravos que fugiram e vieram se refugiar nessa região, que é São Pedro dos Bois, Ambé e o Mel da Pedreira.

Outra versão sobre as origens da denominação do Quilombo do Mel dá conta de que os escravos fugitivos encontraram mel numa pedreira, na localidade do quilombo, e saciaram sua fome, ainda, no século XVIII. As narrativas misturam-se na memória dos moradores do quilombo. Quando cruzamos os dados, na linha do tempo, prevalece a narrativa da origem nos primeiros escravos que construíram a Fortaleza de Macapá. Grande parte das pedras da Fortaleza de São José do Macapá foi retirada por escravos do fundo do rio Pedreira (VIDAL, 2007; LUNA, 2011). Até hoje alguns anciãos do Quilombo do Mel veeem uma balsa que emerge do fundo do Rio Pedreira com escravos que apanham pedras no fundo do rio  para a construção da Forteleza de São José.

Rio Negro afirma que os quilombos das margens do rio Pedreira ficaram isolados da comunidade dos brancos até 1956, ano em que foi construída a primeira via de acesso a Macapá:

Eu estava com oito, dez, dez anos. E outros já iam tirando com enxada aqueles montes que havia no campo, tem aquele torrão, pra poder o caminhão não pular muito alto, né? E foi assim que a gente abriu o primeiro ramal. Foi em 1956.

O dinheiro brasileiro só chegou ao conhecimento dos quilombolas em 1965; e continua Rio Pedreira: “O dinheiro só foi visto pela primeira vez no Quilombo em 1965”. Este fato aponta para o isolamento social em que permeceneu o Quilombo do Mel até a década de 1960.

O Quilombo do Mel da Pedreira fica na floresta amazônica, às margens do rio Pedreira, afluente da foz do rio Amazonas. O lugar, além de ser cercado por lagos e florestas tropicais, dispõe de solo fértil. A localização do Quilombo do Mel liga-se às pedreiras trabalhadas pelos escravos que construíram o Forte de São José do Macapá (LUNA, 2011). A localidade é cercada de campos de várzea e cerrado margeados pelo lago que forma o rio Pedreira. A ocupação da faixa de cerrado residual é o cenário no qual a população do Mel está concentrada. O acesso é possível pela BR 210, aproximadamente no km 30, conhecido como ramal do Ambé. Observa-se, no percurso, a presença de grandes plantações de pinho, pertencentes à empresa ANCEL Celulose S.A. Em alguns trechos, é visível a típica vegetação de cerrado em contraste com o que restou da floresta amazônica, em algumas partes do acesso à comunidade.

O quilombo vive uma espiritualidade genuína, fruto do cruzamento da religião africana com a religião de pena e maracá dos encantados de origem indígena. Há pouco mais de cinquenta anos o Quilombo do Mel vive uma conversão coletiva ao protestantismo calvinista presbiteriano.  Recentemente, nos últimos 50 anos, sob a influência do protestantismo calvinista, os cultos são realizados sob o rufar dos tambores africanos. Os quilombolas do Quilombo do Mel são apegados à leitura da Bíblia, por isso mesmo, não existem analfabetos entre eles. Alguns aprenderam a ler por meio da leitura da Bíblia Sagrada, nos cultos dominicais.

Além da musicalidade africana, o centro do culto é a pregação. A pregação geralmente encontra-se centrada no conceito de justiça dos profetas do Antigo Testamento, com destaque para Miqueias, Amós e, especialmente Isaias; e nas lições de solidariedade do Novo Testamento, com ênfase para o Capítulo 2 do livro Atos dos Apóstolos. Rio Amazonas, 80 anos, foi o primeiro a converter-se ao protestantismo, em 1966. Rio Amazonas é o responsável pela conversão coletiva do quilombo. É um excelente orador sacro. O centro da sua pregação é a justiça. Talvez a justiça que nem os escravos nem seus descentes conheceram no Brasil. No Quilombo do Mel prega-se a justiça não somente com ideal a ser atingido mais especialmente como meio de  reparação as justiças sofridas no passado e no presente. Rio Amazonas:

Capítulo seis, versículo oito de Miqueias: “Ele te declarou, ó homem, o que é bom; e que é o que o Senhor pede de ti, senão que pratiques a justiça, e ames a benignidade, e andes humildemente com o teu Deus? “E o Senhor respondia pra ele, né? O Senhor disse assim, o profeta Miqueias disse olha: “Ó homem, o senhor te ensinou o que é bom, o que que ele pede de ti? Que pratiques a justiça, ames a misericórdia e admire humildemente com tudo.” Então são coisas que eu gosto de falar pro povo. Ele disse pro povo de Israel. Então ele, é isso, praticar a justiça e a justiça o que era? A justiça é, espera aí, eu esqueço, tomei remédio ontem.

E neste contexto das injustiças de ontem e de hoje sofridos pelos descendentes de escravos que passaremos a analisar a presença do trauma histórico transgeracional nas memórias do quilombo.

GOMES, Antonio Maspoli de Araújo. Trauma Transgeracional e Resiliência na diáspora africana. São Paulo: Reflexão, 2018


[1] In: República Federativa do Brasil, Ministério da Cultura, FUNDAÇÃO CULTURAL PALMARES. Diretoria de Proteção ao Patrimônio Afro-Brasileiro. Certidão de Auto Reconhecimento. 12 de outubro de 2005. Processo número 01420.002.395/2005-10. Registro número 413, Fls. 21 do Amapá, Registrado no Livro supramencionado, publicado no Diário Oficial da União n. 43, de 04 de março de 2004, Seção 1, F. 07.

[2] In: República Federativa do Brasil, Ministério da Cultura – Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária – INCRA. Título de Reconhecimento Coletivo e Pró Diviso, de 13 de março de 2012. Entidade Outorgada: Associação de Moradores e Remanescentes de Quilombolas do Mel da Pedreira – AMORQUIMP. Registro de Imóveis Eloy Nunes, Comarca de Macapá, AP. Registro L.2.R.01/26410 f. 1 de 13 de março de 2012.

[3] Depoimento em poder deste pesquisador.

[4] Autor desconhecido. Oferecido gentilmente pelo acervo do músico Zé Míguel.

[5] Os depoimentos dos sujeitos da pesquisa foram transcritos exatamente como os autores os expressaram, sem correções – salvo a adequação linguística básica, mesmo assim, sem prejuízo da informalidade ou de eventuais desvios, estes foram conservados.

[6] Autor desconhecido. Oferecido gentilmente pelo acervo do Músico Zé Miguel, do grupo Milícia.

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