Culpa e Graça

Antonio Maspoli

Introdução

Existem conceitos e experiências humanas, arraigadas no ocidente que independem de credo, sexo, raça ou mesmo religião. A culpa é um destes fenômenos. A sociedade ocidental desde o liberalismo teológico do século XIX, especialmente sob a influência da teologia da morte de Deus vem tentando resolver o problema da culpa. A psicanálise também caminhou nesta direção. Em alguns meios psicanalíticos acreditou-se, inclusive, que a destruição pura e simples do conceito cristão de pecado seria suficiente para liberar toda a humanidade ocidental do fardo terrível da repressão e da culpa. Alguns psicanalistas, à semelhança de Wilhem Reich, dedicaram suas vidas e trabalharam em suas pesquisas para este fim.

O resultado alcançado parece estar longe de resolver o problema da culpa e da responsabilidade humana pelos seus atos, sejam eles bons ou maus. A psicanálise enfrenta uma de suas piores crises de relevância, frente aos velhos conflitos, as novas demandas e novas descobertas da neurociência no mundo contemporâneo. Hoje Reich já passou a ser um dos psicanalistas quase esquecidos. A religião e a experiencia religiosa trouxeram de volta os conceitos de pecado e culpa para assombrar o homem pós-moderno.

Joseph Campbell, et all (1986) conceitua culpa como: “O sentimento que uma pessoa tem de ter errado, violado algum princípio ético, moral ou religioso. Associados de modo típico a essa consciência estão um grau muito baixo de autoestima e um sentimento de que o erro cometido deve ser expiado ou compensado. ” (CAMPBELL, p. 142). Otto Fenichel, (1981), parece concordar com esta definição, quando afirma que “Os sentimentos de culpa que acompanham a prática de uma maldade e os sentimentos de bem-estar que resultam do cumprimento de um ideal são os modelos normais seguidos pelos fenômenos patológicos da depressão e da mania ” (FENICHEL, p. 96). De modo geral a culpa nasce quando o homem age contra a sua própria consciência e desconsidera em seus atos a norma ética da busca pelo bem comum. Ou dizendo de outro modo: “Tudo o que quereis que os homens vos façam, fazei-o vós a eles. Esta é a lei e os profetas.(Mateus 7:12)”

As conceituações psicológicas, todavia, desconsideram em suas assertivas as afirmações bíblicas para as origens e o problema humano da culpa. A culpa tem espectros multifacetados na explicação de sua gênese. A fim de ajudar o leitor a compreender algumas questões relevantes relacionadas com o tema da culpa apresentaremos alguns fatores importantes para se compreender o problema da culpa. E discutiremos alguns caminhos teológicos e psicológicos a fim de buscar solução para este dilema humano.

A culpa arquetípica ou primordial na teologia bíblica

O ocidente judaico cristão vai buscar a gênese teológica da culpa no chamado pecado original, o pecado adâmico, quando Adão comeu da árvore do conhecimento do bem e do mal e desobedeceu a Deus, fato este amplamente narrado em Gênesis 2 e 3. Nesta interpretação o homem teria herdado a culpa desta transgressão e já nasce devedor perante o Criador.

A culpa do primeiro homem lhe é imputada e a questão, segundo a qual o homem é pecador porque peca, após adquirir consciência, carece de relevância posto que ele já nasce pecador. Daí não importar a pergunta se o homem peca porque é pecador? Ou se o homem é pecador porque peca? Pecando ou não, segundo a tradição cristã, o homem nasce pecador diante de Deus.

Na teologia bíblica surge um axioma mais consistente, à luz de Romanos 7, o homem peca porque é pecador. O pecado neste caso não se refere apenas a um ato moral consciente, mas à própria natureza humana, (ROMANOS. 7:24). Por inferência podemos afirmar o mesmo sobre a culpa. O ser humano nasce devedor, culpado diante de Deus, embora em sua primeira infância até os quatro anos de idade, o homem ainda não tenha nenhuma consciência de seus atos morais, esta inconsciência não o exime da culpa primordial, por isso, a criança, desde o ventre materno, depende da graça especial de Deus para o perdão desta culpa e para a sua salvação pessoal. No caso da criança cabe registrar que o perdão e a salvação em Cristo lhes são imputados automaticamente pelo Espírito Santo, independentemente de qualquer credo ou vivência religiosa.

Em decorrência desse axioma, o homem peca, porque é pecador. A partir do momento que, em seu desenvolvimento ontogenético, a criança adquire consciência do pecado, ela passa a ser pecadora também porque peca. Neste caso, temos a culpa pela responsabilidade individual sobre uma transgressão cometida perante a lei de Deus. Como pode ser depreendido pela experiência de Caim: “E o Senhor disse a Caim: Por que te iraste? E por que descaiu o teu semblante? Se procederes bem, não é certo que serás aceito? Se, todavia, procederes mal, eis que o pecado jaz à tua porta; o seu desejo será contra ti, mas a ti cumpre dominá-lo” (GÊNESIS 4: 6-7). A experiência de Davi no Sl. 51 corrobora assim a experiência de Caim. “Eis que fui nascido em iniqüidade, E em pecado me concebeu minha mãe”
(
SALMOS 51:5). Este relato bíblico, arquetípico, não deixa dúvida sobre a responsabilidade humana sobre os seus desejos e suas ações.

No entanto, este é apenas um lado da moeda, o fator consciente da culpa. No processo de culpabilidade existem ainda fatores inconscientes. O homem pode cauterizar a sua consciência, enganá-la, tal como afirma Isaias ”Tal homem se pascenta de cinzas; o seu coração enganado o iludiu, de maneira que não pode livrar a sua alma, nem dizer: Não é mentira aquilo em que confio” (ISAIAS 44:20).

Negar o pecado, acostumar-se a ele, cauterizar a própria consciência pode livrar o indivíduo da culpa consciente, mas não o livrará jamais da culpa inconsciente. Especialmente, porque o inconsciente é ético e responsável (Jung, 1988). O inconsciente continuará a apresentar a conta a ser paga em decorrência do pecado, perante o pecador. E esta conta torna-se cada vez mais elevada, pois pode traduzir-se em sintomas de doenças psicossomáticas, à semelhança do que ocorreu com Davi no Sl. 32.

A vivência continua da culpa pode baixar o sistema imunológico do sujeito, facilitando o desenvolvimento de enfermidades como foi prefigurado por Davi no Salmo 32, “Enquanto calei os meus pecados, envelheceram os meus ossos pelos meus constantes gemidos todo o dia” (SALMO 32:3). Harold Koenig (2012) afirma que a culpa pode alterar o sistema imunológico da pessoa culpada. Uma pessoa culpada tem mais propensão para desenvolver doenças autoimunes, inflações, infecções etc. ||Português: João Ferreira de Almeida Revista e Atualizada||Salmos||32||3

Quando iniciei na clínica psicologia, há mais de trinta anos, atendi uma mulher, que se queixava de chorar sempre, de forma intensa e copiosa, diante do anuncio na imprensa da morte de uma personalidade importante. A mulher chorava muito, diante do anúncio da morte de uma personalidade pública, um político, um artista, etc. Após uma anamnese bem elaborada, ficou comprovado que aquela mulher aparentemente não tinha nenhuma razão consciente para chorar. No entanto, numa certa consulta, ela relatou que cometera seis abortos e não se sentia culpada por esta prática, considerada comum em sua classe social. Instada a refletir sobre a relação entre o seu choro compulsivo e a morte de seus filhos que não chegaram a nascer, a mulher chegou à conclusão de que estava chorando pelos seus seis filhos perdidos nos abortos cometidos.

A mulher encontrou-se diante de um dilema ético. Assumir a responsabilidade pessoal pelos abortos cometidos e a culpa correspondente ou, permanecer deprimida. Felizmente esta paciente optou por assumir as responsabilidades pessoais pelos atos cometidos e depois de um breve luto, foi curado do sintoma que a afligia.

O recalque consciente da culpa não foi suficiente para eximir a mulher da responsabilidade pelos atos cometidos. O seu inconsciente, todavia, continuava a exigir o pagamento da culpa pelo aborto dos filhos. E quanto à culpa inconsciente graças a Deus, ainda não existe remédio humano, só existe o remédio divino. Parece que Davi orou pelas culpas inconscientes, quando pede perdão pelos pecados que lhes são ocultos da sua própria consciência. “Quem pode discerniras próprias transgressões? ?
Absolve-me das que me são ocultas!
(SALMOS 19: 12)

A solução para o problema da culpa: a graça da justificação pela fé

A graça comum e especial de Deus cobre todos os pecados, todas as enfermidades, todos os problemas humanos e opera em todos os homens e mulheres, em todas as circunstâncias e situações da vida: depressão, angústia, medo, síndrome do pânico, tendências suicidas, perdas etc. (ROMANOS 8: 26-30). O problema da culpa será tratado no contexto maior da graça de Deus na vida do homem.

No Novo Testamento, o problema da culpa é resolvido por intermédio do sacrifício expiatório de Jesus Cristo. Na teologia bíblica a justificação pela fé é a base para a solução do problema humano da culpa, pois “Todos pecaram e carecem da glória de Deus” (ROMANOS 3:23). “Não há justo, nenhum se quer” (ROMANOS 3:10). Por essa causa, o homem já nasce com a propensão para desenvolver o sentimento de culpa e, do ponto de vista da teologia cristã, já nasce culpado. Esse estado, o obriga a prestar contas pelos seus atos pessoais a Deus, a si mesmo e à sociedade, como está escrito em Romanos “Assim, pois, cada um de nós dará contas de si mesmo a Deus” (ROMANOS 14:12).
Existem inúmeros textos da Bíblia sagrada que tratam do problema do pecado e por inferência da culpa humana. Para não dispersar a reflexão bíblica, teológica, centralizaremos nosso estudo em Romanos 1:16-17, por considerá-lo suficiente para resolver o problema da culpa humana diante de Deus pela justificação. Segundo Guilherme Tyndale (apud Bruce 1981), a epístola aos Romanos “é a principal e a mais excelente parte do Novo Testamento, e o mais puro Evangelho” (P. 9). E a excelência desta Carta é compreendida por todos quantos dela se acercam com o espírito de Cristo. E só poderemos nos acercar desta Epístola com este espírito, se nos voltarmos para o contexto em que a mesma foi escrita. Isto é, se a contextualizarmos dentro da História e do autor, bem como do destinatário, para quem foi escrita, a Igreja em Roma.

E fazendo este estudo histórico teremos mais facilidade em compreender por que para Lutero (ad tempora) esta Carta “é uma luz e uma vereda para a totalidade da Escritura”. A partir destas premissas estaremos fornecendo ao leitor alguns dados importantes para a compreensão deste passo das Escrituras e sua aplicação nos problemas humanos da culpa.

Sua Autoria – Dentre as 14 epístolas atribuídas ao Apóstolo Paulo, (incluindo Hebreus), Romanos é universalmente aceita como sendo da autoria do grande apóstolo, sem maiores dúvidas. E esta autoria, além de contar com o testemunho da patrística, conta com o fato de que só mesmo um homem com a formação filosófica e teológica de Paulo poderia tê-la escrito. Conta-se ainda com o testemunho da própria epístola, de que foi este o apóstolo que a escreveu, ou melhor, que a ditou.

  1. Data – Ela foi escrita antes de completar-se a 3º viagem missionária de Paulo, o que nos faz situar a data depois de 53 d.C. Existe certa unanimidade entre seus exegetas de que a carta teria sido escrita por volta de 57 d.C.

  2. Local –F. F. Bruce. (Bruce, 1981, p. 13) parece crer que a carta tenha sido escrita em Corinto, durante o inverno de 56-57 d.C., na casa de Gaio.

  3. Destino – Embora uma cópia desta Epístola tenha circulado livremente, o fato é que originariamente, ela foi enviada a Roma por Febe.

e) Propósito – seu propósito era preparar o cristão de Roma para o futuro ministério de Paulo entre eles e fazer uma exposição didática, apologética da doutrina pregada por Paulo, bem como de seus planos missionários.

f) Tema – O grande tema desta epístola é a justificação pela graça divina, mediante a fé em Jesus Cristo (ROMANOS. 1:16-17).

Este texto, Romanos 1:16-17, conforme o esboço supra referido, pertence ao capítulo que trata da justificação pela fé propriamente dita. No entanto outros autores o colocam como pertencendo ao prólogo da Epístola. Os autores, porém, são unânimes na afirmação de que o mesmo encerra o tema da epístola: a justificação pela fé. O grande desafio para aquele que se sente culpado é encontrar alguma justificação para seus atos que aliviem os seus sentimentos. Deus oferece por meio de Cristo a justificação pela fé, a base do seu perdão, para aquele que sofre do peso da culpa.

Depois de saudar os cristãos de Roma e expor os motivos de sua Epístola, Paulo introduz o tema de sua mensagem. E este texto segundo Russel Norman Champlin trata em suma do “Evangelho por meio do qual alcança a revelação da justiça de Deus e do elevado destino dos remidos” (CHAMPLIN, 1981, p. 573). O que Paulo queria dizer, com as expressões contidas nestes dois versículos é que se o homem há de ser justificado diante de Deus, ele o será apenas por fé, excluindo totalmente as suas obras ou possíveis méritos e/ou mesmo deméritos pessoais.

Este texto, portanto, não é apenas uma síntese da Epístola aos Romanos, mas sim, uma síntese de todo o ensino escriturístico sobre a justificação do pecador diante de Deus. Trata-se de uma síntese do Evangelho de Jesus Cristo, largamente dissecado e pregado por Paulo ao longo do seu ministério.

Por aquela ocasião, Paulo encontrava-se em Corinto, provavelmente durante o inverno de 57 d.C. Durante mais de três anos estivera trabalhando em Éfeso, e estava em sua terceira viagem missionária. O Evangelho já havia sido pregado a toda província da Ásia e o Apóstolo dos Gentios, já havia escrito outras epístolas tais como Gálatas e I Coríntios.

Há muito tempo que Paulo vinha pensando em ir a Roma e agora, na casa de Gaio, ele tomou a sua decisão. Pensava ele em levar o Evangelho até a Espanha e, como era um homem prevenido, Paulo escreveu para os cristãos de Roma, expondo sua doutrina e seus planos em busca, quem sabe, do apoio espiritual e político desta Igreja para seus propósitos missionários na parte Ocidental do Império.

Alguns são da opinião de que, por ser Roma o centro do Império, Paulo alimentava esperança de que a Igreja de Roma viesse a se transformar no centro do cristianismo. Outros julgam que pela importância de Roma, Paulo buscava naquela Igreja uma base de apoio para futuras incursões, e esta última opinião é mais fácil de aceitar, por ser mais congruente com o conteúdo de sua missiva. Para fazer desta Igreja uma base de apoio, sendo ela o centro ou capital, localizada no coração do Império Romano, um antro de corrupção e luxúria, necessário se fazia dotar a Igreja local dos conhecimentos básicos do Evangelho.

O maior problema relacionado a esta Igreja, porém reside nas teorias que existem sobre a sua origem. Paulo ainda não havia estado em Roma. Ele não tinha intenções de edificar sobre fundamento alheio. Como podemos então harmonizar sua linha de conduta missionária com as intenções claramente doutrinárias, demonstradas por ele em relação à Igreja de Roma? Acreditamos que esta pergunta haverá de ser respondida pelo estudo da origem da Igreja a quem foi endereçada a Carta. No entanto, preferimos deixar esta questão para os exegetas.

Contudo analisaremos algumas teorias a respeito do assunto. Segundo F.F. Bruce, (1981) esta Igreja teria sido fundada por romanos que ouviram o Evangelho, quando do discurso de Pedro no dia de Pentecostes. No entanto esta hipótese não parece provável, pela falta de documentação mais específica a respeito, além do relato de Atos 2, e pelo fato de que, na época da Epístola, havia um número muito grande de cristãos em Roma, que não parecem ser filhos espirituais daqueles que ouviram a mensagem de Pedro.

Outra teoria, esposada pelos Católicos Romanos, afirma que esta Igreja teria sido fundada por Pedro, que estivera em Roma e lá vivera 25 anos. Mas esta teoria é, não apenas improvável, como absurda, pelos fatos que se seguem: a) Se esta Igreja de Roma foi fundada por Pedro, porque Paulo não faz alusão a ela nesta Epístola, como era de se esperar? E porque ao chegar preso em Roma, Paulo não faz alusão a Pedro, se este era de fato o fundador e o pastor desta Igreja em Atos 28? b) se o próprio Paulo afirma nesta Epístola que não pretende edificar sobre o fundamento alheio, quando ele estava doutrinando a Igreja de Roma, isso significa que na verdade não foi ele e sim Pedro que a fundou? C) Se Pedro de fato foi até Roma, por que é que não existem evidências históricas no Novo Testamento de sua estada lá, já que 25 anos cobririam mais de um terço de sua vida.

A teoria mais aceita com base na própria Epistola aos Romanos é aquela, segundo a qual a Igreja em Roma teria sido fundada por imigrantes judeus e gentios que se mudaram para lá, já convertidos pelas pregações de Paulo, durante as primeiras jornadas missionárias. Esta teoria justifica as numerosas saudações de Paulo aos cristãos daquela Igreja. E esta teoria tem ainda a seu favor o fato de que Roma naquela época era o centro mais procurado do Império para se viver.

E outro fato notável desta igreja, é o de que ela era formada essencialmente por gentios convertidos, embora lá existissem, sem dúvida, muitos judeus cristãos. Isto é comprovado pelo elevado número de nomes latinos citados por Paulo em suas saudações. E este fato vem justificar as doutrinas expostas na Epístola que procuram fundamentar a Igreja contra as influências judaizantes, que provavelmente já tinham chegado a Roma, e ao mesmo tempo, traziam à tona a real situação dos judeus diante do Evangelho.
Os judaizantes acreditavam que o homem estava apto, por si mesmo, pelos seus próprios esforços, para resolver o problema da culpa. Paulo, em Romanos, demonstra a incapacidade do homem de lidar com a culpa e, por isso, Deus resolveu este problema para o ele através da graça de Cristo. Paulo estava fundamentando a Igreja de Roma, para evitar, ou pelo menos amenizar os problemas criados pelos judaizantes, como ocorreu na Igreja da Galácia.
Paulo aborda os problemas relacionados, tanto com os gentios cristãos, quanto com os judeus cristãos. Os Gentios de Roma – isto é, os cristãos gentios da Igreja de Roma – estes estavam inclinados a crer que os judeus não tiveram influência alguma para o advento do cristianismo e ao que parece até os menosprezavam em suas pretensões de povo escolhido de Deus. Daí a argumentação de Paulo de que os judeus foram os escolhidos primariamente para servirem de órgãos da revelação de Deus às outras nações no Velho Testamento.
Os judeus de Roma – estes ao que parece, depois de convertidos ao cristianismo mostravam ares de superioridade e talvez, por influências dos judaizantes ou mesmo por incompreensão do Evangelho, preservavam ares de santidade, guardando todo um mosaismo, isto é, a lei e os preceitos cerimoniais de Moisés no Pentateuco.

Neste contexto Paulo escreve esta Carta, não apenas com vistas a expor o conteúdo do Evangelho, mas ainda a resolver os problemas existentes entre judeus e gentios convertidos ao cristianismo na Igreja de Roma. É por isto que a sua epístola está eivada de argumentação, procurando estabelecer as relações entre judeus e gentios nos propósitos de Deus.

Paulo aproveita a deixa dos problemas existentes entre eles para lhes ensinar que, tanto judeus, como gentios carecem da graça de Deus, para serem considerados justos, já que homem algum é justo por si mesmo, ou alcançou a justificação pelas obras da lei. A justificação pela fé, o perdão e a solução do problema da culpa é apresentado por Paulo no contexto da graça de Deus e como fruto desta graça. “Veio, porém, a lei para que a ofensa abundasse; mas, onde o pecado abundou, superabundou a graça; para que, assim como o pecado reinou na morte, também a graça reinasse pela justiça para a vida eterna, por Jesus Cristo nosso Senhor (ROMANOS 5:20-21).

Em outras palavras, enquanto combatia judaizantes e gentios presunçosos, Paulo procurava expor a natureza do Evangelho de Cristo e de sua salvação, os quais ele apresenta baseados exclusivamente na graça de Deus, revelada em sua justiça por meio de Cristo, que no-la concede exclusivamente pela fé. Será pela justiça divina e não pela sua própria que o homem será justificados dos seus pecados e aliviados do sentimento de culpa que o atormenta. Segundo o Comentário Interpretado do Novo Testamento, (CHAMPLIN, 1981, p. 575), a Epístola aos Romanos trata dos seguintes temas principais:

  1. A justiça de Deus – a justiça de Deus é apresentada como requerendo um plano de redenção de Deus para o homem (cap. 1 a 3). Não existe justiça em sentido absoluto fora de Deus. Daí é inútil buscar justiça em si mesmo para se justiçar diante de Deus.

  2. Cristo é a justiça de Deus – isto é, a justiça que Deus requer do homem, para que este possa ser declarado justo, é o próprio Jesus Cristo, pois a justiça de Cristo pode ser atribuída aos homens (cap. 5 a 8).

  3. A fé é o veículo por meio do qual fluem as bênçãos de Cristo – isto é, a fé é um dom de Deus e é através desta fé, por meio desta fé que Deus atribui a justiça de Cristo a todo aquele que crer (ROMANOS 1).

  4. A identificação espiritual do cristão com Cristo – (cap. 6)

  5. O conflito entre a nova e a antiga natureza no indivíduo regenerado (cap. 7)

  6. A relação entre a nação de Israel e a Igreja Cristã nos planos divinos (cap. 9 a 11).

  7. A ética cristã – (cap. 12 a 16).

Pelo exposto até aqui pode-se afirmar que o centro da Epístola de Paulo aos Romanos é Cristo, como a mais absoluta expressão da Graça de Deus. E a redenção que ele oferece pela imputação de sua justiça a todo aquele que nele crer.
Outra grande dificuldade para aquele que padece da culpa é encontrar uma forma de expiá-la de pagá-la. Paulo apresenta neste texto Cristo como a expiação de Deus e o pagamento de Deus pelos pecados do homem. Tendo Cristo morrido para pagar os pecados de todo aquele que nele crer, o homem em Jesus Cristo tem seus pecados. Com seus pecados pagos pela obra de Jesus na cruz do calvário pode receber o perdão pelos seus erros, e a partir daí tornar-se livre da sua culpa diante de Deus.
Os motivos principais que levaram Paulo a escrever esta Epístola, além de sua intenção de ir a Roma e de receber de lá apoio para ir à Espanha, são os problemas existentes na Igreja de Roma entre os gentios e judeus convertidos ao cristianismo. Eles não compreendiam sua posição quanto ao sentido da vida e da obra de Cristo. E nem mesmo a sua própria posição teológica em Cristo, diante de Deus, em face da Lei e do Evangelho respectivamente, isto é, em face da salvação pelas obras e em face da salvação pela fé., duas teorias teológicas conflitantes. A primeira, com origem nas doutrinas dos fariseus e a segunda com sua gênese na pregação de Paulo.
Neste texto, Paulo vai direto ao assunto geral e central de sua Epístola, ou seja, “o evangelho por meio do qual é concedida a revelação da justiça de Deus e do elevado destino dos remidos” (CHAMPLIN, 1981, p. 573). “Porquanto não me envergonho do Evangelho, porque é o poder de Deus para a salvação de todo aquele que crê; primeiro do judeu, e também do grego; visto que a justiça de Deus se revela no Evangelho, de fé em fé, como está escrito: “O justo viverá pela fé” (ROMANOS 1:16-17).

Verso 16 – Este versículo é de profundo conteúdo teológico sobre a natureza do Evangelho, que Paulo apresenta aos seus leitores e ouvintes como o poder de Deus para a salvação de todo aquele que crer. E este versículo funciona como uma introdução à declaração do verso seguinte.

Verso 17 – Segue Agora a declaração magistral do Apóstolo: o justo viverá pela fé. E para compreendermos bem o conteúdo deste versículo, bem como o do anterior, necessário se faz refletir sobre o sentido real de cada palavra usada por Paulo, e é o que faremos a seguir:

Pois não me envergonho do Evangelho – Paulo introduz o tema da justificação pela fé com esta declaração. É de consenso geral entre os estudiosos que na capital do Império Romano – Roma, o Evangelho era ridicularizado, como sendo produto do fanatismo religioso, não sendo tomado a sério. Especialmente, no que dizia respeito à doutrina da ressurreição. Se para gregos e romanos, como na declaração acima, o Evangelho representava uma insensatez, e até mesmo uma expressão de loucura, para os judeus não convertidos ao cristianismo representava uma pedra de tropeço, principalmente na concepção vicária que este Evangelho apresentava do Messias. No entanto Paulo considerava o evangelho um motivo de dignidade e celebração, uma fonte perene de poder!

Segundo Crisóstomo (ad tempora), Paulo, ao escrever que não se envergonhava do Evangelho queria dizer tanto para os romanos, quanto para os judeus: embora a vossa cidade seja a senhora do mundo, embora os vossos imperadores sejam adorados como divindades presentes, por mais que vós possais sentir-se elevados pela vossa pompa, luxúria e vitória, não me envergonho do Evangelho que prego, pois é o poder de Deus. Koppe (apud CHAMPLIN, 1981) é como se Paulo estivesse dizendo: “Não me envergonho, nem mesmo em Roma, (…), onde, portanto, a doutrina sobre um salvador crucificado provavelmente nunca causaria atração” (p. 574). O evangelho na verdade é que deveria se envergonhar do homem.

Paulo faz a sua afirmativa, usando uma negativa, e este é um recurso literário de que se utiliza não para diminuir a força de sua expressão, mas para enfatizá-la. E para ele, a questão de sentir ou não vergonha em anunciar o Evangelho de Cristo, não reside num problema de cultura, nem mesmo num problema moral, mas sim num problema de fé. Aquele que crer tem o poder de Deus em si. A sua declaração está em consonância com os ensinamentos do mestre: “Portanto todo aquele que me confessar diante dos homens, também eu o confessarei diante do meu Pai que está nos céus. Mas aquele que me negar diante dos homens, também eu o negarei diante do meu Pai que está nos céus” (MATEUS 10:32-33).

Paulo não para por aí, ele diz não se envergonhar do Evangelho de Cristo. Por isso é sempre bom que nos detenhamos nesta afirmativa de Paulo, pois a vergonha do Evangelho só pode se manifestar, naquele que sente diante de Deus e diante dos homens, fraqueza na fé e incredulidade. Envergonhar-se do Evangelho, para o escritor de Romanos é envergonhar-se do próprio Deus, pois o testemunho do Evangelho é a manifestação de um compromisso de fé e confiança nas promessas de Deus contidas no Evangelho.

Como Paulo poderia se envergonhar da única solução divina para a culpabilidade humana? Neste ponto Paulo demonstra a sua coragem em pregar o evangelho como solução para os problemas eternos e existenciais do ser humano. O evangelho é pregado pelo Apóstolo dos Gentios como a solução eterna para a alma que sofre, seja como conseqüência do pecado cometido por Adão, seja como conseqüências dos seus próprios pecados.

Evangelho- O objeto de que Paulo ousava não se envergonhar não era uma obra literária, nem os feitos de um herói, mas sim, o “Evangelho” de Deus. E para compreendermos o real sentido desta palavra “evangelho”, discorreremos um pouco sobre ela.

O Comentário Interpretado (CHAMPLIN, 1981, p. 574) grafa os seguintes os usos do vocábulo evangelho nos escritos neotestamentários:

a) Grego clássico – no grego mais antigo, bem como nos escritos de Homero, evangelho significa a recompensa para o mensageiro portador das boas novas. Isto é, seria a recompensa, o prêmio que o arauto recebia por ser portador de boas novas.

b) Plutarco – foi o primeiro a usar este termo, com um sentido mais próximo do Novo Testamento. Para ele, evangelho seriam as boas novas de uma vitória.

c) Culto imperial – o termo era utilizado para indicar as proclamações imperiais. Seriam as dádivas de vida e proteção do imperador ao povo. Aqui o sentido já se assemelha àquele usado no Novo Testamento.

d) Novo Testamento – Este termo muito usado em todo o N.T., tem um significado especial. Além do significado divino de boas novas de salvação em Cristo, depois da ascensão de Jesus, a palavra era usada para indicar a proclamação, a pregação concernente a Jesus Cristo, como tendo sofrido a morte na cruz para conceder gratuitamente a eterna salvação dos homens. O evangelho seria “as boas novas de salvação por Cristo: a proclamação da graça de Deus manifestada e hipotecada em Cristo; a exposição do conteúdo do Evangelho segundo o modo de alguém, apóstolo ou pregador” (Thayer apud TAYLOR,1978, p. 90). O evangelho neste sentido é a boa nova de perdão e libertação para o problema do sentimento de culpa do homem por que através do evangelho Jesus liberta o pecador deste sentimento, quando o Espírito Santo aplica neste a obra vicária de Jesus Cristo.

Agora, no sentido de Paulo, o Evangelho tem um significado mais profundo, pois significa tanto o perdão de Deus para o homem em Jesus Cristo, como também, a contínua obra de salvação que o Espírito Santo realiza no coração do homem. Transformando-o à imagem de Jesus Cristo. Para Paulo, portanto o evangelho é apresentado em sua mais alta expressão, para ele o Evangelho representa: o próprio poder de Deus – Romanos. 1:16; a revelação da justiça de Deus – Romanos.1:17; o condutor da salvação a todo aquele que crer – Efésios. 1:13.

Portanto, quando Paulo se refere ao Evangelho como sendo o poder de Deus para a salvação de todo aquele que crer, ele está se referindo à Pessoa e à Obra de Jesus Cristo, bem como à proclamação de seus ensinamentos e seus feitos, sua obra vicária que, em suma, é à base da salvação de todo aquele que crer. O evangelho é a essência dos feitos de Deus em Cristo no passado, no presente e no futuro. Salvação não somente em sentido espiritual. Salvação que alcança a pessoa humana como um todo e proporciona alívio para grande parte dos seus sofrimentos, especialmente daqueles sentimentos produzidos pelos seus pecados ou pelas marcas do pecado como é o caso da culpa e do sentimento de culpa.

O Poder de Deus – Aqui Paulo usa a palavra dinâmis para se referir ao Evangelho. E segundo W. C. Taylor (TAYLOR, 1978, p 61) dinâmis significa poder inerente, força física”, etc. Normalmente este termo aparece no Novo Testamento para indicar poderes miraculosos, poder espiritual, poder em última análise, inerente a Deus e ao seu filho, Jesus. Dinâmis palavra usada por Paulo é a raiz da nossa palavra dinamite. Portanto para o escritor de Romanos o evangelho, o poder de Deus, seria a obra que Deus realiza em Cristo para a salvação de todo aquele que crer. Esta definição de Evangelho como o poder de Deus, implica na onipotência de Deus como fiadora do cumprimento das promessas contidas no evangelho. Deus é o fiador das suas promessas. Nisso reside o poder do evangelho. No entanto, poder de Deus, se refere também à natureza do Evangelho que Paulo prega. E esta declaração nos demonstra a convicção de Paulo de que o evangelho de Cristo não era de natureza judaica, não era invenção de algum místico religioso, mas tratava-se de algo de origem divina, de natureza divina, de espectro universal. O autor do evangelho é o próprio Deus. Deus é compaixão, graça, amor, misericórdia e justiça. Estes termos são a essência do evangelho, sem eles, o evangelho equivale a mais uma religião moralista.

Para a salvação – para se referir à salvação, Paulo usa uma palavra grega que, no N.T. mais especificamente, significa salvação messiânica. No entanto, para compreendermos melhor este conceito de salvação, recorreremos ao sentido bíblico de salvação, voltando ao Velho Testamento e depois ao N.T.

Salvação no V.T. – Esta palavra, que é a mais usada no V.T. para se referir à salvação, corresponde ao verbo yasha, normalmente usado na voz passiva, para designar o ser salvo e na causativa, o fazer salvar ou mandar salvar. É notório, porém, que no V.T., a salvação era entendida apenas em sentido material: salvar da enfermidade; salvar da guerra; salvar da escravidão; salvar da morte etc. Só mais tarde é que o judeu passou a entender a salvação, como algo relacionado com o Deus eterno. E quando passou a entende-la assim, esta salvação também passou a ser considerada como obra exclusiva de Deus. Deus é quem salva e Ele é único salvador. (DEUTERONÔMIO. 20:4; SALMOS. 69:2; ISAIAS. 45:21; OSÉIAS. 5:13; Sl. 51:14).

Salvação no N.T. – No N.T., o verbo salvar e o substantivo salvação aparecem mais de 150 vezes. E já fora do sentido puramente imanente, o judeu passou a relaciona-lo com o eterno em sentido transcendental. A salvação aparece sempre relacionada com o resgate feito por Jesus Cristo ou por Ele anunciado. E, segundo P. Bonnard, a salvação é manifestada no N.T. pela libertação do homem. Libertação essa, não apenas de alguns males, quer sejam sociais ou físicos, mas sim e, acima de tudo, libertação da condenação do pecado. Libertação, por assim dizer, do poder da morte. E esta libertação é efetuada através de Jesus Cristo, que leva o homem a uma nova vida de comunhão com Deus. A salvação, segundo o autor supra referido, seria antes de mais nada, a comunhão restaurada, na paz restabelecida do homem com Deus através de Jesus Cristo. Podemos incluir a libertação da culpa humana na salvação como veremos logo mais.

Segundo o Comentário Interpretado (CHAMPLIN, 1981, p. 575), quando Paulo fala da salvação, ele a associa ao “livramento da tirania do pecado e da degradação da natureza humana decaída, pela obra redentora de Deus em Cristo.”

Assim, Paulo não estava falando da salvação, apenas como salvação material, de uma libertação de caráter social ou físico. Paulo estava falando da salvação num sentido mais amplo. Salvação como uma vida com Deus a partir desta vida como caminho para a vida com Deus na eternidade. Paulo diz que se a nossa esperança se limitar apenas a esta vida, “nós somos os mais miseráveis e infelizes dos homens. E outro fato digno de nota é que Paulo não concebe esta salvação, fora da obra redentora de Jesus Cristo. Para ele, se o homem tem de ser salvo, ele só alcançará esta salvação, mediante a obra redentora de Jesus Cristo.

O conceito paulino de salvação é mais abrangente do que se pensa. Salvação eterna é salvação para uma vida com qualidade divina, aquela vida que só Deus pode oferecer. Salvação eterna é salvação que começa ainda nesta vida. Salvação espiritual é salvação que traz alívio e socorro para os males do corpo e da mente humana. Salvação eterna é salvação que justifica e perdoa o pecador.

De todo aquele que crer – A ênfase de Paulo, nesta expressão recai na palavra crer. Expressada aqui pelo verbo pisteuonti, no dativo singular masculino, do particípio presente, derivado de pistew. E crer aqui é utilizado, no sentido de depositar inteira confiança na pessoa e na obra de Jesus Cristo. A expressão acima demonstra que Paulo está procurando determinar o meio pelo qual o poder de Deus opera. Isto é, o Evangelho, que é o poder de Deus, manifesta este caráter poderoso na vida daquele que deposita a sua confiança em Jesus Cristo. Paulo quer dizer que o evangelho, que é o poder de Deus, opera através da fé e o resultado obtido é a maior de todas as obras, isto é, a salvação pela vida e obra de Cristo, salvação inclusive das culpas conscientes e incoscientes que assolam o ser humano. Cabe registrar que a crença é diferente da fé. A crença é uma manifestação religiosa adquirida pela transmissão da cultura. A fé é uma manifestação espiritual gerada pela graça de Deus. “Porque pela graça sois salvos, por meio da fé; e isto não vem de vós, é dom de Deus.
Não vem das obras, para que ninguém se glorie”
(EFÉIOS 2:1-10).

Pois a justiça de Deus- A palavra utilizada por Paulo para se referir à justiça de Deus em grego significa originalmente retidão e segundo Thayer, apud Taylor, justiça significa também “o estado aceitável a Deus que cabe ao pecador, mediante a fé, pela qual ele abraça a graça de Deus que lhe oferece na morte expiatória de Jesus Cristo.” (TAYLOR, 1978, p. 58). O autor fornece os seguintes significados para o termo ou a expressão justiça de Deus”: a natureza intrínseca, santa de Deus, seria o seu próprio caráter justo (ROMANOS 3:5); outro sentido seria o de norma eterna de santidade divina (ROMANOS 6:13,16); a palavra justiça pode ser tomada também como significando a ação de Deus tanto na justificação como na santificação, ou seriam ainda os resultados dessas medidas divinas operadas na alma do cristão. A justiça de Deus aqui nesta expressão seria: a retidão absoluta, tal como a graça e verdade absolutas revelou-se pela primeira vez no cristianismo. Se justiça aqui, se referisse a justiça humana, como alcançar este caráter de perfeita retidão?

Trata-se daquela justiça que não somente instaura a Lei da letra e requer a retidão da parte do homem, e quando Deus em seu caráter de juiz profere a sentença de morte, mas é igualmente aquela que se manifesta na união com o amor, ou seja, a graça divina em forma de retidão, produzindo essa retidão no homem… quando Deus profere a sentença de vida.

Ou ainda em suma: a justiça de Deus é a auto-comunicação que procede da parte de Deus, que se torna justiça pessoal na pessoa de Cristo, o qual em seu sofrimento como nossa propiciação, satisfez a justiça da Lei (em consonância com as exigências da consciência), que, mediante o ato da justificação, aplica ao cristão, para sua santificação, os méritos da expiação de Jesus Cristo. Esta justiça divina aplicada no coração do cristão pelo Santo Espírito é a base da sua justificação perante Deus. O Deus que julga em Cristo, julga para absolver, não para condenar. A face de Deus como juiz que absolve precisa ser redescoberta pelo cristianismo e pelos cristãos culpados.

Portanto a expressão justiça de Deus, no sentido empregado neste versículo, não se refere ao atributo de Deus ou a qualquer de suas prioridades; nem denota o caráter moral infundido no homem pela ação do Espírito Santo de Deus; mas designa antes a justa relação para com os requisitos da lei divina, que Deus propicia àqueles que creem em Jesus Cristo. Significa a aceitação conferida ao homem pecador por parte de um Deus Santo. A justiça de Deus neste sentido, segundo o abalizado autor citado, seria a soma total de tudo quanto Deus exige, aprova e provê através de Jesus Cristo, a todo aquele que se achega a Ele por meio de Seu Filho Jesus. A justiça de Deus, corresponde não apenas às exigências da Lei, mas também ao cumprimento dessa Lei por meio de Cristo. Seria também a concessão dessa justiça adquirida por Cristo na cruz do calvário, para todos aqueles que nEle depositam a sua fé, a sua confiança.

É exatamente a justiça de Deus, que é a base da justificação pela fé. Pois esta justificação não é um ato gratuito para Deus. Embora Deus conceda a justificação gratuitamente ao homem que deposita em Cristo a sua confiança, esta justiça, ou melhor, a imputação dessa justiça de Deus ao pecador, custou para ele a morte e a ressurreição de seu filho. A imputação da justiça de Deus ao homem, custou para Deus a obra de seu filho Jesus.

Verdadeiramente ele tomou sobre si as nossas enfermidades, e as nossas dores levou sobre si; e nós o reputávamos por aflito, ferido de Deus, e oprimido.
Mas ele foi ferido por causa das nossas transgressões, e moído por causa das nossas iniqüidades; o castigo que nos traz a paz estava sobre ele, e pelas suas pisaduras fomossarados.Todos nós andávamos desgarrados como ovelhas; cada um se desviava pelo seu caminho; mas o Senhor fez cair sobre ele a iniqüidade de nós todos.( ISAIAS 53:4-6
).

Se revela de fé em fé – Segundo J. Murray esta expressão quer acentuar o fato de que a justiça de Deus não somente age salvadoramente em nós, pela fé, mas também age sobre todo aquele que crer. Ou ainda, por esta expressão, Paulo afirma que a justiça alcançada pelo pecador se baseia na fé e se dirige para fé. Isto é, a justificação seria um caminho que parte da fé. Alimenta a esperança e culmina no amor a Deus.

A nosso ver, entretanto, a melhor síntese do real sentido desta expressão é aquela segundo a qual esta frase significa que o homem dá início a esta carreira de justiça mediante a fé. Quer dizer que a fé é o elemento provocador dessa partida, fazendo parte integrante da conversão, como passo inicial da regeneração, uma vez que é obra do Espírito Santo. É provável que esta expressão subentenda haver diversos graus de fé, mas não é essa a sua idéia central. Antes, ela quer afirmar, que a vida humana é uma vida de fé do princípio ao fim.

Pode-se afirmar que por esta expressão de fé em fé, Paulo quer determinar a maneira pela qual a redenção é iniciada no coração do homem: ela é iniciada pela fé. E ele está se referindo ainda à maneira pela qual esta redenção é perenemente desenvolvida pelo Espírito Santo, na vida do cristão: ela é desenvolvida pela fé É este o modo pelo qual Deus opera para justificar todas as culpas humanas perante ele.

A fé, nesta passagem de Romanos é dinâmica. Trata-se do mais alto nível de conhecimento que o homem pode ter de Deus. Conhecimento de Deus, por meio do Espírito Santo que vivifica a sua Palavra revelada na Bíblia Sagrada e opera para a salvação aplicando no coração daquele que crer os benefícios da obra redentora de Cristo Jesus como a libertação da culpa das penalidades terrenas e eternas. E o livra das suas consequências no coração do cristão. Fé que opera para liberta-lo dos grilhoes do pecado e para curá-lo do sentimento de culpa que o atormenta.

O justo viverá pela fé – Este é o cerne de Romanos 1:16-17 e não apenas deste texto, mas mesmo de toda a epístola aos Romanos e de todo o ensinamento do apóstolo Paulo em suas principais cartas. E antes de estudarmos o conteúdo exegético desta expressão como um todo, consideramos importante extrair o significado de cada uma das palavras que a compõem.

O justo – Segundo W. C. Taylor (TAYLOR 1978, p. 58) esta palavra é traduzida por justo, inocente, aprovado, livre da condenação mediante a fé. Vejamos os principais sentidos desta palavra no seu uso histórico: No grego clássico – O adjetivo justo no mundo greco-romano, por volta do primeiro século de nossa era, apresentava 3 significados principais em relação àqueles a quem se aplicava: era considerado justo o sujeito considerado correto em seu comportamento e em suas relações com seus semelhantes; também era considerado justo aquele que fielmente se submetia às leis; finalmente na mística helênica, influenciada pelas religiões orientais justificar significava tornar justo, tornar impecável, perfeito, no sentido de qualidade espiritual adquirida de uma vez por todas. Justificar significa absolver.

O Conceito de justiça no Antigo Testamento – No A. T. a idéia de justiça é bem diferente, pois para os judeus esta idéia de justiça não pode ser compreendida fora de Deus, ou fora das relações do homem com Deus.

O verbo justificar aparece quase sempre na forma passiva e sempre quer indicar que o homem não é justo em si mesmo, mas é justificado, isto é, declarado justo por Deus e é exatamente esta aprovação divina que ele deve procurar acima de tudo. Nesta concepção judaica, Deus é representado primordialmente como um juiz, um rei que julga, a quem o homem deve comparecer para receber ou sua sentença, ou sua aprovação. ISAIAS. 45:25; 5:22 e SALMOs. 143:1-3.

O sentido de justiça no Novo Testamento – Embora no N.T., existam alguns termos em que justiça venha a significar um estado recomendável do homem, (MATEUS. 27:19; LUCAS. 12:57), até nestes textos este estado recomendável deve ser compreendido em suas relações com Deus, idéia esta já presente no V.T. e aqui desenvolvida. Bonard (apud ALLMEN,1972, p. 220-221) afirma que no N.T., “Deus é justo no mesmo sentido do A.T., Ele exerce verdadeiramente seu direito de vida ou de morte, de aprovação ou de desaprovação sobre seus súditos, que são todos os homens sabendo eles ou não”. (ROMANOS. 1:17; 3; 26 e I JOÃO 1:9).

O sentido da justiça no Apóstolo Paulo – O Comentário Interpretado destaca os seguintes aspectos para o sentido de justiça em Paulo: a justiça tratada neste verso, seria a justiça de Deus realizada na Cruz, e agora reivindicada pela pregação apostólica. Rm. 1:17; seria também a condição do homem, como de inteira condenação diante de Deus. Condenação esta, plenamente satisfeita na Cruz de Cristo. (ROMANOS. 5:8; GÁLATAS. 3:13; ROMANOS. 4:5; 5:13; 14:15; § – 25 etc.

Tomando a justiça tratada por Paulo como intimamente relacionada com a cruz, o homem não é justo em si mesmo, mas ele é declarado justo. A justiça de Cristo lhe é emprestada. Dizendo de outra maneira a justificação pela fé é um dom, uma dadiva, uma graça divina. Independe da vontade, não carece das ações e nem das atitudes humanas.

Assim, tanto no Velho Testamento, quanto no Novo Testamento, não se pode compreender a justiça, como um atributo do homem, de sua natureza humana, mas sim como algo que o homem adquire em suas relações com Deus. E ele não a adquire por méritos próprios, pois não é algo característico do homem, mas sim, característico de Deus. Assim, quando Paulo diz que o justo viverá pela fé, o que ele está afirmando é que aquele a quem Deus declara justo, é que gozará da vida de Deus, com Deus. Justo, não é aqui, aquele que tenha alguma qualidade meritória, mas sim aquele a quem Deus atribui as qualidades meritórias de seu Filho Jesus Cristo. Justo, é aquele a quem Deus declara justo, a quem Deus justifica. “Bem-aventurado aquele cuja transgressão é perdoada, e cujopecado é coberto. Bem-aventurado o homem a quem o Senhor não atribui a iniqüidade, e em cujo espírito não há dolo.(SALMOS 32:1,2).

O sentido da palavra viverá- para compreendermos a que tipo de vida a que Paulo estava se referindo, faremos como temos feito em todas as outras partes deste texto, recorreremos ao conceito de vida, tal como ele nos é apresentado e como é entendido na Sagradas Escrituras.

A vida no Velho Testamento – Embora vida no V.T., quase sempre seja entendida num sentido material, é importante notar, que também aqui, e mesmo com este sentido material, os judeus não compreendem a palavra vida fora do relacionamento com de Deus e com o próximo. No A.T., Deus é que dá ao homem a verdadeira vida, em sua totalidade. A vida normalmente é o resultado da atitude do homem em face de Deus e de sua Palavra. A vida no A.T. é Dom de Deus, é graça que Ele concede em plenitude aos que o amam e o obedecem. (DEUTERONÔMIO. 30:15; 32:47; 28:1-14; Sl.36 e PROVÉRBIOS. 3:1-10).

No Novo Testamento – Vida no N.T. está sempre relacionada com a ressurreição de Cristo, e é entendida num sentido mais amplo que no V.T., pois em vez de se prender apenas ou, quase sempre simplesmente a realidades materiais, como no V.T, a vida no N.T., aponta sempre para o eterno. “Nele estava a vida, e esta era a luz dos homens. ”(JOAO 1:4)

E, além do conceito popular que normalmente se tem da vida eterna, como vida na eternidade, no N.T. a concepção de vida abrange este conceito para significar também a participação da salvação na vida de Deus ainda nesta vida. Não faria nenhum sentido para Deus que seu povo continue a viver na miséria humana depois de conhece-lo e dEle receber a sua graça. Vida é essencialmente e acima de tudo comunhão com Deus e com o próximo. Neste sentido a morte espiritual é a solidão total de Deus e do outro. E este conceito de vida, além de aparecer ricamente em Jesus Cristo, isto é, nos Evangelhos, evidencia-se de maneira notória em Paulo. Para ele a vida é aquele restabelecimento da comunhão do homem com Deus, por meio de Jesus Cristo para viver em comunhão com o homem (ROMANOS. 1:17; I TIMOTEO. 1:11 e 6:12).

F. F. Bruce (1981), entende que nos escritos de Paulo, vida (principalmente vida eterna), e salvação, eram praticamente sinônimos. E segundo este autor, ao afirmar que “o justo viverá pela fé” Paulo está dizendo que aquele que é justo, (justificado), pela fé, permanece salvo e livre das suas culpas. Vida então aqui é tida como sinônimo de salvação. Bruce ao afirmar que o justo viverá pela fé, o que o Apóstolo dos Gentios quer dizer com viverá, é que aquele que é justificado pela fé em Cristo, terá sua comunhão com Deus restabelecida nesta vida e por toda a eternidade. E não sofrerá as penalidades e a condenação nem nesta e nem na outra vida.

Em Paulo, a fé tem o mesmo sentido no N.T. que tem no A.T., e ele mesmo a apresenta tão relacionada com Deus e suas promessas, que em Ef. 2:8. Assim, ele nos apresenta a fé como sendo um dom de Deus. Portanto, para ele, a fé é uma dádiva de Deus para a salvação em Cristo, e nada tem a ver com crendices, ou superstições como querem alguns. A fé é algo que ele apresenta como bem relacionada com a pregação da Palavra de Deus e com a obra do Espírito Santo no coração dos filhos de Deus em Jesus Cristo. “ Porque pela graça sois salvos, por meio da fé; e isto não vem de vós, é dom de Deus.
Não vem das obras, para que ninguém se glorie;
(
EFÉSIOS 2:8,9).

Convém salientar ainda, que a fé em Paulo, não é o objeto da confiança do cristão. Para ele, o objeto da confiança do homem é Jesus Cristo. Assim, ao afirmar que “o justo viverá pela fé“, ele está afirmando que a fé será o meio pelo qual o homem chegará até Jesus Cristo e receberá de suas mãos a sua justiça, a justificação. A fé em Paulo é apenas um meio, e um meio que é gerado pelo próprio Deus, através de sua Palavra, aplicada pelo Espírito Santo ao coração de todo aquele que crer (TAYLOR, 1978). Já a expressão Fé para W.C. Taylor, fé é conceituada universalmente na Bíblia, como “uma experiência realizada no coração como cumprimento da obra de Cristo, na doutrina e no gozo da salvação” (p. 174). Neste caso a fé seria a atitude pela qual a inteira personalidade humana descansa sobre Deus ou sobre o Messias em absoluta confiança e dependência em seu poder, bondade e sabedoria. “De Deus depende a minha salvação e a minha glória, A rocha da minha fortaleza e a minha salvação estão em Deus” (SALMOS 62:7).

Depois de compreendermos detalhadamente o sentido das principais palavras empregadas pelo apóstolo Paulo neste texto de Romanos. 1:16-17, passaremos a comentar o texto em seu sentido geral. Isto é, comentaremos o texto considerando-o como um todo, para compreendermos melhor o real sentido a elas atribuído por Paulo, para melhor compreendermos aquilo que ele tem a dizer para nós, aprendizes da Palavra de Deus.

A expressão de Romanos “o justo viverá pela fé“, quer dizer que aquele que é justo (justificado), pela fé é que é salvo, absolvido. E esta expressão não é original de Paulo, mas é uma citação que ele faz do profeta Habacuque.

Habacuque 2:4 – Habacuque clamando a Deus contra a opressão sob a qual seu povo se encontrava, no VII século a.C., recebe de Deus a segurança de que a impiedade não triunfará e a justiça será finalmente vitoriosa para aqueles que lhe permanecessem fiéis. “Eis que a sua alma está orgulhosa, não é reta nele; mas o justo pela sua fé viverá” (HABACUQUE 2:4).

A melhor tradução apontada para este texto é a de o justo viverá por sua fé. Pois no próprio Talmude, o hebraico imunah é traduzido como sendo por sua fé, e IMUNAH foi traduzido na LXX, pela palavra grega empregada por Paulo neste texto que significa, em última análise, a fé, como sendo a inteira dependência do homem na graça de Deus. Crabtree (CABTREE, 1977, p. 234) afirma que esta expressão de Habacuque, é a síntese da doutrina dos profetas sobre o relacionamento do homem com Deus e do homem com o homem. E segundo o mesmo autor, esta posição de Habacuque vai exatamente de encontro ao sacerdotalismo, que pleiteava, em sua época, um relacionamento do homem com Deus, baseado apenas no cumprimento da Lei e do cerimonialismo judaico. Com esta expressão o profeta afirma que a base do relacionamento do justo com Deus, não é o cumprimento dos ritos judaicos e nem da lei mosaica, mas sim, a inteira confiança do homem nas promessas de Deus para seu povo, em sua palavra. E já em Habacuque encontramos a base Bíblica de que a salvação não é fruto de obras ou méritos humanos, mas algo que depende inteira e exclusivamente da graça de Deus. A salvação é uma dadiva de Deus!

O que Paulo faz, é apenas interpretar este ensino profético à Luz da epifania de Deus em Cristo.E a primeira citação que Paulo faz desta expressão Bíblica não é a de Romanos, mas sim, a de Gálatas, esta epístola datada provavelmente de 55 ou 56 d.C. e, portanto, anterior a Romanos,

Gálatas 3:11 Os gálatas haviam aceitado o Evangelho, tal como Paulo o pregara. Isto é, a salvação como obra consumada de Deus em Cristo para todo aquele que crer. No entanto, através das influências judaizantes, os cristãos da igreja da Galácia acrescentaram à sua fé em Cristo, o cumprimento da Lei e do ritual mosaico como uma espécie de complemento para a sua fé. É usado por Paulo como afirmação de um grande principio pelo qual aqueles que confiam no Senhor, por Ele são aceitos como justos. Aqui Paulo faz o contraste entre a salvação pelas obras e a salvação oferecida no Evangelho, que se dá unicamente pela graça.

Não que Paulo esteja dizendo aos Gálatas, ao afirmar que o justo viverá pela fé, que a fé seja substituta da justiça requerida pela lei de Deus. O que ele quer dizer é que esta justiça requerida por Deus, não pode ser conseguida de outra maneira, a não ser por meio da fé, na imputação da justiça de Cristo.

Romanos 1:17 – As palavras centrais que destacamos neste texto são respectivamente, justo e fé. E ao comentar este texto, todos também, encontram facilidade em crer que a palavra dikaios, justo é usada aqui para indicar aquele que é livre da condenação mediante a fé. O dikaios a que Paulo se refere, não seria justo em si mesmo, mas seria aquele que é justificado mediante a sua fé na justiça de Cristo. A justiça neste caso, daquele justo, seria a imputação da justiça de Cristo. A justiça dele é a própria justiça de Cristo que lhe foi imputada. E Lutero, compreendeu este conceito de modo tão profundo que chegou a afirmar: “Senhor Jesus, tu és o meu pecado e eu sou a tua justiça, o que eu era tu te fizeste ser, para que eu seja o que tu és”(Ad tempora).

Neste sentido, justo aqui em Romanos 1:17, é aquele a quem Deus declara justo, mediante sua fé na justiça de Cristo. Isto é, a base da justificação é o próprio Cristo, o que exclui totalmente a possibilidade infundada da salvação pelas obras. As obras são apresentadas em Paulo como sendo apenas os frutos desta justiça imputada. “ Porque somos feitura sua, criados em Cristo Jesus para as boas obras, as quais Deus prepararam para que andássemos nelas” (EFÉSIOS 2:10). É interessante frisar que esta justiça não é infundada, mas sim, imputada. Não que Deus infundisse, como querem os romanos, a justiça de Cristo no coração daquele que crer. Isso não! O que ele faz é imputar a justiça de Cristo a todo aquele que depositar em Cristo a sua confiança. É por isso que esta imputação é conseguida por meio da fé, apenas da fé, e não por meio de exercícios espirituais, sacríficos ou barganhas como querem os romanos.

A fé é, portanto, o meio indicado por Paulo, pelo qual o homem toma posse da justiça de Cristo. Isto fica claro quando consideramos a preposição usada aqui por Paulo éx, usada também em Gálatas 3:11 e 3:7. Nestes textos esta preposição é usada no genitivo, mas não para indicar origem, isto é, não para dizer que a fé é a causa da justificação, mas para afirmar que ela é um meio apenas. Meio para que o homem alcance a justiça de Deus, que tem por base a obra redentora de Jesus Cristo. Aqui também convém ressaltar a importância desta expressão para refutar qualquer outro meio que se possa aventar para se alcançar a justificação de Deus em Cristo. O meio apontado pelo Apóstolo Paulo, inspirado pelo Espírito de Deus, é a fé. E a fé somente.

Em nenhum ponto dos ensinamentos de Paulo, ou das Escrituras, encontramos outra base para a justificação do homem diante de Deus, a não ser a obra de Jesus Cristo, e também em nenhum ponto da Palavra de Deus encontramos outro meio para que o homem alcance esta justificação, a não ser por meio da fé.

Finalmente queremos ressaltar que neste texto paulino a justificação é posta como meio de salvação em oposição ao esforço de assegurar a aceitação da parte de Deus pelo cumprimento da Lei, tanto a contida nos preceitos mosaicos, quanto na consciência. A fé como graça de Deus exclui qualquer possibilidade de barganha do homem com Deus pela sua justificação.

A carta de Paulo aos Romanos, é, sem dúvida alguma, a principal porta de entrada para os mistérios mais profundos do evangelho. É a genuína interpretação do evangelho salvador de Jesus Cristo. Entrando por esta porta, o leitor indubitavelmente penetra no real sentido do evangelho. Suas cartas levam o homem a relacionar-se verdadeiramente com Deus através de Jesus Cristo. E, se considerarmos a carta aos Romanos a Verdadeira Porta do Evangelho, Romanos 1:16-17, é sem dúvida alguma a chave para se abrir esta porta, isto é, Romanos 1:16-17 é a chave para a compreensão total e integral de Romanos, pois neste texto Paulo nos oferece o cerne de sua Carta, que é ao mesmo tempo o núcleo de seus ensinamentos, e dos ensinamentos do nosso Senhor Jesus Cristo. Em Romanos 1:16-17, Paulo nos fala do evangelho de Cristo.

Paulo nos apresenta o Evangelho, não como sendo fruto das elocubrações filosóficas da humanidade, mas sim, como sendo o trabalho de Deus através de seu filho Jesus Cristo. Não sendo apenas um corolário de doutrinas, destinado a levar o homem a crescer em termos morais e religiosos, contudo, nos ensina o Evangelho, como sendo o poder de Deus, em suas palavras, “o evangelho é o poder de Deus para a salvação de todo aquele que crê. ”

Neste texto Paulo nos fala da justiça de Deus. Ele nos diz que esta justiça “se revela no Evangelho de fé em fé”. Isto é, a justiça de Deus se revela para aquele que crê, e se desenvolve plenamente para a justificação daquele que crê, na vida daquele que crê. Assim, ao afirmar que a “justiça de Deus se revela no Evangelho de fé em fé”, Paulo está afirmando que a justiça requerida por Deus para a aprovação do homem pecador, está perfeitamente cumprida no Evangelho, onde a mesma nos é apresentada em Cristo e através de Cristo.

O centro do pensamento de Paulo reside na sua afirmação de como o homem alcança a justiça de Deus. Isto é, como ele alcança a aprovação de Deus, e passa a ser considerado justo. Esta afirmação de Paulo, de que o “justo viverá pela fé” é um princípio bíblico que nega totalmente a pretensão de alguns de que o homem seja capaz de alcançar, através de seus esforços, qualquer justificação diante de Deus, Lutero comentando este assunto, afirma, com fundamento em Paulo, que “o homem é justificado pela fé somente, sem obra alguma”(ad tempora).

Também em Romanos 1:16-17, Paulo nos dá meios para revidar aqueles que, como Laplace (ad tempora), afirmam que a fé dos cristãos “é uma fé na fé”, isto é, afirmam que o objeto supremo da religião cristã é a fé. Isso não é verdade. Paulo nos diz claramente que a fé é o único meio pelo qual o cristão é justificado diante de Deus. Isto é, por meio da fé na justiça de Cristo é que o cristão é declarado justo e entra em comunhão com o objeto supremo de sua fé, que é Deus. A fé em Paulo é algo relacional, ela só opera na relação do homem com Deus para o bem de si mesmo e do seu próximo. Fé na fé é fantasia, ilusão, loucura. Assim, sempre que alguns pretensiosos queiram se levantar para encontrar no homem a justiça que o mesmo não tem e nem pode conseguir diante de Deus, Paulo vem, inspirado pelo Espírito Santo, e nos afirma que o homem é justificado pela justiça de Deus em Cristo, mediante a fé.
Dificuldades para se experimentar e viver o perdão de Deus
A base para a construção dos relacionamentos humanos, inclusive com Deus é o relacionamento desenvolvimento com a figura paterna e materna na primeira infância. Além das figuras paternas e maternas, pesa também na construção dos relacionamentos futuros, o relacionamento desenvolvimento naquele período com a figura do cuidador ou cuidadores.

A principais dificuldades para se vivenciar o perdão de Deus está relacionada aos conflitos psicológicos decorrentes da relação com a figura paterna na primeira infância. Pessoas que foram vítimas de abusos físicos ou sofreram com uma educação marcada pela repressão da parte do pai, projetam a imagem que criaram da paternidade rigorosa em Deus. Tais pessoas geralmente apresentam sérias dificuldades para aceitar a compaixão, a misericórdia, a graça, o amor e o perdão de Deus. Relacionam-se coma imagem de um Deus cruel criado à imagem e semelhança da figura paterna que os criou.

A introjeção da imagem de um pai cruel e a projeção desta imagem num Deus rigoroso desenvolve no sujeito uma consciência rígida, exigente a semelhança de um julgador tirano. Tais pessoas geralmente apresentam enorme dificuldade para aceitar e perdoar os próprios erros e os erros e pecados de seus semelhantes. Nestes casos quando o sentimento de culpa não se resolve com a confissão, necessário se faz buscar a ajuda de um profissional, um psicólogo, um analista, um conselheiro, onde o sugilo da confissão esteja garantido.

A proposta do Evangelho para solucionar a culpa é simples. O homem deve romper com seus mecanismos de defesas e assumir diante de Deus a responsabilidade pessoal pelos seus pecados, transgressões, erros e fracassos. Em seguida, confessá-los a Deus por meio de Jesus Cristo. “Se confessarmos os nossos pecados, Ele é fiel e justo para nos perdoar os pecados e nos purificar de toda injustiça (1JOÃO 1:9). Confessar, nesse caso, consiste em contar tudo para Deus em oração, fazer um relato do pecado, da transgressão, da culpa, e concordar com as promessas de Deus em sua Palavra, com o fato de que Cristo já efetuou o pagamento de toda a sua dívida, já levou sobre si todas as culpas do pecador. Cristo simboliza o sacrifício divino, o último sacrifício. Sendo assim, o círculo vicioso foi quebrado, não se faz mais necessária à auto expiação, pois ela não precisa mais ocupar o lugar do sacrifício.

É possível que ainda reste a memória da culpa para o cristão, e que a culpa o venha penalizar pelos erros e pecados cometidos, mas é bom lembrar que, diante de Deus, toda a dívida já foi apagada “Pois, para com as suas iniquidades, usarei de misericórdia e dos seus pecados jamais me lembrarei” (HEBREUS 8:12).

Na fase aguda da depressão, o deprimido perde aquelas condições bioquímicas do cérebro necessárias para assimilar e vivenciar a fé e as consequências benfazejas das promessas bíblicas. Por diversas vezes, já ouvi cristãos deprimidos, leitores da Bíblia, devotados à oração, piedosos acreditarem que estão perdendo a fé, quando na verdade, estão sofrendo de depressão. Na fase aguda da depressão, já presenciei mais de uma vez esses cristãos se apegarem aos textos condenatórios da Bíblia, e os usarem contra si mesmos, aumentando, assim, o seu sofrimento. Atendi em 1986 um sociólogo, da segunda geração de presbiterianos no Brasil, que quando estava na crise aguda da depressão grifava todos os textos condenatórios da Bíblia e aplicava esses textos a si mesmo, o que aumentava o seu sofrimento e fragilizava ainda mais a sua saúde mental.

Após receber o perdão de Deus, necessário se faz perdoar a si mesmo!

Considerações Finais

Não importa qual seja a origem da culpa, real, pessoal ou psicológica. A culpa é um problema humano de difícil solução.

A justificação perla fé é a base bíblica para a solução do problema humano da culpa, pois “Todos pecaram e carecem da glória de Deus” (ROMANOS 3:23). “Não há justo, nenhum se quer” (ROMANOS 3:10). Por esta causa, o homem desenvolve a propensão para desenvolver o sentimento de culpa e, do ponto de vista da teologia bíblica, já nasce culpado. Este estado o obriga a prestar contas pelos seus atos pessoais a Deus, a si mesmo e à sociedade, como está escrito: “Assim, pois, cada um de nós dará contas de si mesmo a Deus” (ROMANOS, 14:12).
Desde o seu nascimento, a dívida do homem para com Deus, só tende a aumentar. O Homem jamais conseguirá por si mesmo saldá-la. (Ef. 2:9). A fim de solucionar este problema humano Deus deu o seu próprio filho, unigênito, Jesus Cristo como pagamento da dívida humana (JOÃO 3:16, ISAIAS53:4-6, II CONRÍNTIOS 5:21). Quando Lutero sintetizou estes textos com a exclamação: “Senhor Jesus, eu sou teu pecado e Tu és a minha justiça. O que eu era, tu te fizestes ser para que eu fosse o que Tu és. ” Na realidade Lutero estava parafraseando a expressão paulina de II Coríntios 5:21: “Aquele que não conheceu pecado, Ele o fez pecado por nós; para que, Nele, fossemos feitos justiça de Deus. ” Na expressão poética de Gióia Júnior (ad tempora) “Mas a cruz que Ele usou- a rude cruz, a cruz negra e mesquinha onde meus crimes todos expiou, essa não era Sua, ESSA CRUZ ERA MINHA! ”
Tudo no Evangelho é simples, a solução para o problema da culpa é igualmente simples. O homem deve romper com seus mecanismos de defesas e assumir diante de Deus a responsabilidade pessoal pelos seus pecados, transgressões, erros e fracassos. Em seguida confessá-los a Deus por meio de Jesus Cristo. “Se confessarmos os nossos pecados, Ele é fiel e justo para nos perdoar os pecados e nos purificar de toda injustiça (I JOÃO1:9) ”. Confessar neste caso, consiste em contar tudo para Deus em oração, fazer um relato do pecado, da transgressão, da culpa e concordar com as promessas de Deus em sua Palavra com o fato de que Cristo já efetuou o pagamento de toda a sua dívida, já levou sobre si todas as culpas do pecador.

É possível que ainda reste a memória da culpa, que o cristão ainda venha a penalizar-se pelos erros e pecados cometidos, mas é bom lembrar que diante de Deus, tudo já foi apagado conforme Hebreus 8:12: “Pois, para com as suas iniquidades, usarei de misericórdia e dos seus pecados jamais me lembrarei. ”

Para concluir, o imaginário cristão cunhou a seguinte parábola: O cristão procurou viver piedosamente, mas como todo ser humano, não conseguiu. Morreu e foi chamado diante do Criador, compareceu perante o julgamento do Juiz, do Grande Trono Branco (APOCALÍPSE 20:11-15). Lá estavam Deus, o Grande Justo Juiz, o Acusador dos irmãos fazendo o papel de promotor e o Advogado do cristão, Jesus Cristo (I Jo. 2:1). Deu-se início ao julgamento do cristão.

O promotor relatou um a um, todos os pecados cometidos pelo discípulo de Jesus, inclusive suas promessas de santificação e seus fracassos, suas alianças com Deus e sua incapacidade de cumpri-las, suas omissões, suas negligências e suas fraquezas. E exigiu o cumprimento da justiça, expressa em Ezequiel 18:4: “A alma que pecar, esta morrerá”, completando com a exigência de Romanos 6:23 “O salário do pecado é a morte”.

O advogado do cristão, Jesus Cristo pediu a palavra:

O cristão refletiu um pouco e respondeu:

Somente a fé no perdão incondicional de Deus, decorrente do amor incondicional de Deus pode resolver o problema da culpa humana. A Bíblia diz em Rm 8: 38-39: “Porque estou certo de que, nem a morte, nem a vida, nem anjos, nem principados, nem coisas presentes, nem futuras, nem potestades, nem a altura, nem a profundidade, nem qualquer outra criatura nos poderá separar do amor de Deus, que está em Cristo Jesus nosso Senhor”. O amor incondicional de Deus consiste no fundamento para o acolhimento do culpado. “Deus é amor” (1JOÃO 4: 12). Deus ama porque é da sua natureza amar. Seu amor é eterno (Jr 31), imutável (8: 38-39) e incondicional (Is 49: 1) e sacrificial (JOÃO 3: 16). Deus ama o cristão saudável e o doente. Ama aquele que se encontra em bom estado de saúde e ama especialmente o culpado. Deus compreende o homem melhor do que ninguém. O perdão de Deus deve ser exercido de forma incondicional! Aquele que recebeu o perdão de Deus, deve perdoar a si mesmo de forma incondicional!

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